quinta-feira, março 15, 2012

Como regressando de uma viagem de regresso, ou como um dia eu queria escrever sobre uma viagem de regresso de onde não pensasse voltar


A lânguida serenidade do rio. Como um avô que nos olha, que nos anima, que está lá.

Avô, tenho saudades dos dias que nunca me deste, e não morreste e eu sinto tanto a tua falta. E sinto falta dos dias que me deste, desse caminho que percorro de comboio, nesta paisagem, neste caminho que demora, neste sentir que chego a casa, mesmo quando recuso a casa, mesmo quando não me sinto bem quando estou - a verdade é que quando começo a chegar tudo me faz sentido no caminho, como se aprendesse tudo o que não aprendi neste tempo, como se desaprendesse a distância em que vivo, o tempo que não tenho, o voltar que não me inspira nada quando penso que tenho que voltar. Avô, eu sou isto. Mesmo sem nunca te ter tido, és tu que me ensinas a voltar a casa.

O rio. Este mar dos pequenos de que fugi, mas que me percorre lágrima a lágrima. Quando choro chamo-me Tejo. Sem foz, por isso o rio em mim é cascata. Um Tejo pequenino, feito só de memória, gota-a-gota. E quando rio, quando eu me rio, chamo-me o nome de quem me chama - Tu aí, com licença, boa tarde, amor – há quanto tempo não Amor. O rio passa-me em maré cheia, no sentido norte, o meu olhar perdido num tempo que passou. Ruína a ruína, o rumor antigo das fábricas, a sirene que já não toca, fábrica a fábrica, abandonadas de trabalhadores, de suor, de exploração sentida mas pronta a rejeitar, a Vila abandonada de economia, eu recordo-me de passar aqui e de ver entrar os trabalhadores. No meu tempo, há trinta anos, eram felizes, era o tempo que ainda cheirava a auto-gestão, era o tempo do salário constante, do décimo terceiro mês, do décimo quarto mês, da certeza da reforma, do trabalhar para nós e para todos, era o tempo em que a sirene tocava e eles eram felizes, quantas vezes ali aprendi a felicidade, quantas vezes ao passar ali eu senti que a felicidade era ouvir aquela sirene, era cumprir os nossos filhos quando os nossos filhos passavam ali, a felicidade era chegar à construção, ao edifício, senti-lo orgânico sem o saber vivo, sentir que o tempo que se passava ali era um tempo de futuro.
O presente deste caminho é feito de ruínas. A felicidade ficou nas ruínas.

Avô, porque nunca me contaste histórias? Eu nasci, tenho cinco anos, tenho dez anos, tenho desasseis anos, tenho trinta anos e tu nunca me contaste histórias. Partiste e outros me foram contado histórias, dispersas, como avôs a termo certo. Histórias tuas, também, de heroísmo ou de cobardia conforme concordavam ou não com as tuas opções, conforme olhavam para as tuas acções, como se interpreta uma fotografia – tu com barba e de bóina, revolucionário, acho eu que por circunstância. Porque nunca me falaste disso? Agora corro atrás de ti, sigo a linha do comboio, sigo o rio. O rio sujo que colocavas nas mãos em concha, enganando-me, dizendo que era limpo e que me fazia recordar a memória contada por outros dos tempos que nunca me contaste em que nadavas para a outra margem no turbilhão dos golfinhos. Corro atrás de ti, seguindo o leito do rio, o ritmo do comboio, o fluir das palavras.
Estas palavras, avô. Corro contra o tempo, porque quero contar-te a minha história.

2 comentários:

Anónimo disse...

incrivelmente bem escrito e verdadeiro não deixe de escrever.

Flour disse...

Gosto muito, :)