A lânguida serenidade do rio. Como um avô que nos olha, que
nos anima, que está lá.
Avô, tenho saudades dos dias que nunca me deste, e não
morreste e eu sinto tanto a tua falta. E sinto falta dos dias que me deste, desse caminho
que percorro de comboio, nesta paisagem, neste caminho que demora, neste sentir
que chego a casa, mesmo quando recuso a casa, mesmo quando não me sinto bem
quando estou - a verdade é que quando começo a chegar tudo me faz sentido no
caminho, como se aprendesse tudo o que não aprendi neste tempo, como se
desaprendesse a distância em que vivo, o tempo que não tenho, o voltar que não
me inspira nada quando penso que tenho que voltar. Avô, eu sou isto. Mesmo sem nunca te ter tido, és tu que me ensinas a voltar a casa.
O rio. Este mar dos pequenos de que fugi, mas que me
percorre lágrima a lágrima. Quando choro chamo-me Tejo. Sem foz, por isso o rio
em mim é cascata. Um Tejo pequenino, feito só de memória, gota-a-gota. E quando
rio, quando eu me rio, chamo-me o nome de quem me chama - Tu aí, com licença,
boa tarde, amor – há quanto tempo não Amor. O rio passa-me em maré cheia, no
sentido norte, o meu olhar perdido num tempo que passou. Ruína a ruína, o rumor
antigo das fábricas, a sirene que já não toca, fábrica a fábrica, abandonadas
de trabalhadores, de suor, de exploração sentida mas pronta a rejeitar, a Vila abandonada de economia, eu recordo-me de passar
aqui e de ver entrar os trabalhadores. No meu tempo, há trinta anos, eram
felizes, era o tempo que ainda cheirava a auto-gestão, era o tempo do salário
constante, do décimo terceiro mês, do décimo quarto mês, da certeza da reforma,
do trabalhar para nós e para todos, era o tempo em que a sirene tocava e eles
eram felizes, quantas vezes ali aprendi a felicidade, quantas vezes ao passar
ali eu senti que a felicidade era ouvir aquela sirene, era cumprir os nossos
filhos quando os nossos filhos passavam ali, a felicidade era chegar à
construção, ao edifício, senti-lo orgânico sem o saber vivo, sentir que o tempo
que se passava ali era um tempo de futuro.
O presente deste caminho é feito de ruínas. A felicidade ficou nas ruínas.
Avô, porque nunca me contaste histórias? Eu nasci, tenho
cinco anos, tenho dez anos, tenho desasseis anos, tenho trinta anos e tu
nunca me contaste histórias. Partiste e outros me foram contado histórias,
dispersas, como avôs a termo certo. Histórias tuas, também, de heroísmo ou de
cobardia conforme concordavam ou não com as tuas opções, conforme olhavam para
as tuas acções, como se interpreta uma fotografia – tu com barba e de bóina,
revolucionário, acho eu que por circunstância. Porque nunca me falaste disso?
Agora corro atrás de ti, sigo a linha do comboio, sigo o rio. O rio sujo que
colocavas nas mãos em concha, enganando-me, dizendo que era limpo e que me fazia recordar a memória contada por outros dos tempos que nunca me contaste em que nadavas para a
outra margem no turbilhão dos golfinhos. Corro atrás de ti, seguindo o leito do
rio, o ritmo do comboio, o fluir das palavras.
Estas palavras, avô. Corro contra o tempo, porque quero contar-te a minha
história.
2 comentários:
incrivelmente bem escrito e verdadeiro não deixe de escrever.
Gosto muito, :)
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