terça-feira, maio 18, 2010

Entre o individualismo e a individualização

Não posso deixar de partilhar este excerto da obra de Steinbeck, "As Vinhas da Ira". Numa era de individualização, da derrota aparente do colectivismo, da afirmação dos estilos de vida encerrados no "Eu", eis a causa, eis parte da solução - para quem, nas palavras do autor, como Paine, Marx, Jefferson ou Lenine, somos efeitos. Como "nós".

"Um homem, uma família expulsos das suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se, rangendo pela estrada, rumo ao Oeste. Eu perdi as minhas terras; um tractor, um só, roubou-mas. Estou sozinho e desnorteado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu, que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu receias. Aí é que está o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o "eu perdi as minhas terras", rompe-se uma célula e dessa célula rota brota aquilo que tu tanto odeias: o "nós perdemos as nossas terras". Aí é que reside o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos, como um só. E desse primeiro "nós" nasce algo muito mais perigoso: "eu tenho algum pão" mais "eu não tenho nenhum." E o resultado dessa soma é: "Nós temas alguma coisa." Então, a coisa toma um rumo; o movimento passa a ter um objectivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse tractor, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos fixos; atrás, as crianças escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança. A noite desce. A criança constipa-se. Olhe, tome este cobertor. É de lã. Pertenceu a minha mãe. Tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do "eu" para o "nós"."


sexta-feira, maio 14, 2010

A coisa aqui está preta! (2)

"(...) Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (...)"
Meu Caro Amigo, de Chico Buarque

Volto ao tema - e à música do Chico - não porque estou contra as comemorações do título do Benfica, a convocatória do Queiroz, nem sequer por achar ilegítima a dedicação mediática e institucional dada à passagem do Papa pelo "Caixão Vazio", como nos caracterizou o Baptista Bastos.
A questão coloca-se com o aproveitamento desta época de "Fado, Futebol e Fátima", que o fascismo à nossa maneira tão bem sabia propícia à alienação popular, para o Governo anunciar as medidas de austeridade já previstas. Entre comemorações, exultações, expiações, espremem-nos ao cêntimo os tostões e deixam-nos para depois com as reclamações, com tempo para preparar optimistas previsões, das crises bolsistas as evocações, do olvido para os que, através de nós, ganham milhões... E de "ões" em "ões" paro por aqui, antes que do cinto apertado passem para o resto!
A coisa aqui 'tá mesmo preta... Neste país, "nesta cidade" (e aqui, como resposta, em jeito de encenação, entram os Xutos...)