quarta-feira, setembro 28, 2011

Sobre o Orçamento Participativo em Vila Franca de Xira

O anúncio de um processo de Orçamento Participativo (OP) no concelho de Vila Franca de Xira (VFX) poderá, a priori, entusiasmar aqueles que, como eu, defendem outro modelo de gestão da “coisa pública”, mais participativo e, na senda efectiva de uma abordagem que respeite a etimologia: mais democrática.
A democracia de carácter representativo em que vivemos veio dar resposta às necessidades de uma “sociedade comercial”, cujo objectivo corresponde à tomada de decisões pragmáticas no contexto da complexidade da governação, maximizando-se a responsabilidade política e minimizando as possibilidades de participação (1). A democracia representativa cria, assim, cidadãos privados, focados nas preocupações privadas do emprego ou da família, afastados, portanto, das instituições, dos conceitos e das políticas e práticas que constituem a estrutura e a dialéctica do que se convenciona como Democracia (a que conhecemos como tal e que tão violentamente exportamos). Mais do que a verbalização popular exageradamente generalizante do “eles são todos iguais”, ou “os políticos são todos uns ladrões”, é na estatística associada ao acto representativo por excelência – o voto! – que se percebe este afastamento, verificando-se, entre 1976 e 2011, um aumento da abstenção de 16,47% para 41,97% (2).
Esta realidade, além dos problemas de legitimidade sistémica, cria disfuncionalidades que toldam a cidadania, diminuem a capacitação cidadã no contexto dos processos de sociabilização e, como corolário, promovem a exclusão social. Segundo o Banco Mundial, “… [a] baixa participação e as desigualdades sociais estão tão ligadas entre si que uma sociedade mais equitativa e humana requer um sistema político mais participativo” (3).
Falar, portanto, de participação pública, ou do aprofundamento participativo dos processos democráticos das sociedades ocidentais contemporâneas, é falar de reconhecer que a complexidade das relações societais não se resolve apenas em sede de representação, mas com a participação dos indivíduos e organizações que corporizam essa complexidade. Em última instância, a deserção popular inspira a autocracia, enquanto a participação fortalece a democracia.

Conscientes das ambiguidades associadas ao desenvolvimento humano, diversas instituições globais têm promovido programas e projectos cujo enquadramento se sustenta na participação pública e na promoção de uma democracia mais participativa, mais eficaz, equitária e sustentável. São exemplos desses programas o OP ou a Agenda 21 Local (A21L), processos que a Câmara Municipal (CM) de VFX afirma promover.

No entanto, se se considerar que a concertação está para a democracia participativa como o voto está para a democracia representativa (4), as práticas assumidas de participação têm tido perspectivas que, muitas vezes, mais que concertar, ou assentar numa base clara de partenariato, servem para legitimar as opções dos decisores, ou seja, encontram-se nos níveis mais baixos da escala de Arnstein (a escala de Arnstein (1969) define oito níveis de participação - Manipulação, Terapia, Informação, Consulta, Apaziguamento, Partenariato, Delegação de Poderes e Controlo Cidadão). Com efeito, segundo Dalal-Clayton, “nos países industrializados, as agências governamentais seguem com frequência o que Walker e Daniels (1997) chamam de modelo dos 3I: informar (o público), invite (comentários) e ignorar (opiniões)” (5).

A experiência da participação pública em VFX vem exactamente no sentido desta consideração. Os processos recentes de participação pública aquando da Revisão do PDM e da A21L, assim chamados, são paradigmáticos da tendência para ignorar os seus resultados, ao mesmo tempo que, como Pilatos, a autarquia lava as mãos das eventuais acusações de não promover a participação cidadã. No primeiro caso, optou-se por um modelo de abordagem passiva, com sessões públicas devidamente institucionalizadas nas intervenções políticas oficiais e do público (maioritariamente daquele público cujo capital político o aproxima do oficial), na teia da informação técnica e na formalidade dos actos de estar presente e intervir – tendo existido a participação, não só nas sessões públicas, mas também nas propostas endereçadas por outras vias, quantas e quais dessas propostas foram consideradas? No segundo caso, após um processo de auscultação aos presidentes de junta e após onze sessões de participação activa (utilizando metodologias de envolvimento que implicavam a participação de todos os presentes) em todas as freguesias do concelho, foram priorizados diversos problemas, apoiados em acções concretas para os resolver – mas o que aconteceu a essas acções, a esse processo?
Nos dois exemplos mencionados, a ideia de participação e o capital de esperança depositado pelas populações nesses processos foram completamente desperdiçados. No final da tese de mestrado que escrevi sobre a A21L em VFX, comentava: “Em Vila Franca de Xira ou em qualquer outro lugar do mundo, quebrar o processo é não encarar o futuro” – claramente quem gere os destinos de VFX ignorou o caminho que construía através desse processo…

Tendo apoiado a realização de um OP, não só enquanto técnico da CM que fui mas também enquanto eleito municipal, ao constatar o modelo e a forma como este processo iria ser iniciado no concelho, não me consegui entusiasmar. OP é, por definição, “um mecanismo governamental de democracia participativa que permite aos cidadãos influenciar ou decidir sobre os orçamentos públicos, geralmente o orçamento de investimentos de prefeituras municipais, através de processos da participação da comunidade” (6). Numa leitura linear, bem, entre a definição e a prática, VFX e a grande maioria dos municípios portugueses que implementam o OP serão pioneiros da participação e do envolvimento cidadão na gestão da “coisa pública”! No entanto, “influenciar ou decidir” o quê?
O processo proposto de OP em VFX, para quem não conhece, é “deliberativo condicionado” (7), ou seja, assenta em propostas do município, que serão priorizadas pelos votantes. Traduzo: a CM diz aos interessados que tem estes projectos em carteira, os quais, não podendo ser todos realizados em 2012, terão que ser priorizados – e aí entram os interessados, priorizando! Os projectos propostos são:
- Em Alverca do Ribatejo: Requalificação da zona a tardoz da Rua 9 de Agosto; Requalificação da Praceta da Cabine;
- Em Póvoa de Santa Iria: Requalificação da Rotunda dos Caniços; Requalificação do Espaço frente ao Parque Infantil da Urb. Tágides Park;
- Em Vialonga: Requalificação do espaço a tardoz da Rua Olival Santo e Rua Manuel Inácio Braga; Reconversão do antigo Parque Infantil do Morgado em zona de estadia e lazer
- Em Vila Franca de Xira: Requalificação do antigo parque infantil do parque Residencial de Povos; Requalificação dos espaços exteriores nas traseiras da Rua Egas Moniz junto à Escola Prof Reynaldo dos Santos.

Mais do que a perversão do processo de OP, há a constatação da própria perversidade do sistema: segundo os nossos representantes, os problemas de VFX existem apenas nas chamadas zonas verdes ou de lazer, como se pode ver pelos projectos propostos. Num processo de participação real, não sei se alguém se iria lembrar de mencionar sequer qualquer um destes projectos como prioridade… “Influenciar e decidir”, participar, não é escolher qual é o projecto que um determinado vereador vai inaugurar primeiro!
Mesmo o argumento propagado da falta de tempo para organizar um processo de OP que se reconhecesse como tal, não convence nem compensa a falta de entusiasmo (nas populações e nos responsáveis políticos) que este modelo assume. Se era vontade da autarquia desenvolver o OP em 2011 (como foi assumido pela Sra. Presidente da CM), mesmo com falta de tempo para o preparar, porque não ter em consideração projectos, acções e problemas assumidos pelas populações, por exemplo, no processo da A21L, esquecido e encostado, conforme se pode ver na ligação?

Considero que o fortalecimento da democracia necessita de uma participação pública efectiva; de parcerias e não do isolamento do poder. Acredito que a superação da crise passará muito por aí – ultrapassando a crise económico-financeira, mas antes disso a crise de valores e de ética.
A CM VFX tem exercido, com a sua prática, exactamente aquilo que os teóricos e os técnicos de Participação mais temem – substitui sustentável por sustentado e participativo por participado – contribui com obscurantismo institucional e desconfiança à necessidade de abertura das instâncias do poder.
Talvez, um dia, a imagem que apresento a seguir se materialize:
“Cidadania, mundo público aberto à discussão, alto nível de associativismo, relações de confiança e reciprocidade disseminadas na sociedade, relações individuais não segmentadas; para além do grupo social familiar e, finalmente, experiência de governo comunal, em que a participação popular é a tónica e a informação circula sem grandes barreiras, portanto, a custos não proibitivos: eis a descrição aproximada de uma comunidade cívica dotada de alto nível de capital social, em que provavelmente existe bom governo, bom desempenho institucional e, como consequência dos anteriores, bom nível de desenvolvimento económico.” (8)

O caminho de construção de uma democracia mais participativa tem, seguramente (até pelos exemplos globais da aplicação deste processo), desarmonias com o status institucional vigente. Deixo, aqui, ligações ao processo do OP de Belo Horizonte, no Brasil, do qual existe um interessante documentário realizado pelo português João Ramos de Almeida.
A crítica que faço ao OP de VFX não é um apelo à não-participação. Pelo contrário: contra a participação legitimadora da não-participação do “nós até temos OP”, é preciso que participemos em todos os momentos possíveis e que reforcemos a necessidade de aprofundar este e outros processos, para que não caiam, mais uma vez, no esquecimento cinzentista da gestão autárquica que a nós devemos. Para que VFX possa indicar, enfim, um caminho de futuro.

(1) MARTINS, Manuel Meirinho (2005), Governo Local, Participação e Cidadania – Entre o Cidadão Político e o Cidadão Consumidor, in: Mota, Arlindo (2005), Governo Local, Participação e Cidadania – O caso da Área Metropolitana de Lisboa, Vega, Lisboa, pp. 7- 16
(2) www.cne.pt
(3) CUNHA, Paulo Vieira da e Maria Valeria Junho Peña (1997), The Limits and Merits of Participation, Policy Research Working Paper, The World Bank
(4) LACOUTURE, Henri Bourrut (2006), Educación ambiental, participación ciudadana, desarrollo sostenible y Agenda 21 Local, III Jornadas de Educación Ambiental de la Comunidad Autónoma de Aragón, CIAMA, Zaragoza,
(5) DALAL-CLAYTON, Barry e Stephen Bass (2002), Sustainable Development Strategies: A Resource Book, OECD, Paris and United Nations Development Programme, New York
(6) http://pt.wikipedia.org/wiki/Orçamento_participativo
(7) http://www.op-portugal.org/noticias.php?id=868
(8) BONFIM, Washington Luís de Sousa e Irismar Nascimento da Silva (2003), Instituições Políticas, Cidadania e Participação: A Mudança Social ainda é Possível?, Revista de Sociologia e Política, número 021, Universidade Federal do Paraná, Curutiba (Brasil), pp. 109-123