sexta-feira, abril 29, 2011

Deixem jogar o Mantorras

Parti da hipótese da inexistência de heróis, como se todos os actos de coragem, abnegação, propulsores de uma motivação colectiva que nos levasse a transcender com as nossas acções a realidade que vivemos, não tivesse passado, ao longo dos séculos, de maquinações desenhadas num gabinete de uma agência de inteligência ou num convento qualquer, dedicados a manipular as nossas vontades e, como substrato, ter usado histórias inventadas de homens e mulheres cujos actos nunca ocorreram. A nossa História seria uma mentira e a humanidade, na verdade, não acrescentava qualquer valor simbólico ao conjunto biofísico em que nos inserimos – a vida não teria sonho e não teria esperança.

Parti daí. Mas quando chegava ao final, com artigo pronto a editar e orgulhoso da encenação intelectualizada que tinha criado, revi umas imagens do Mantorras e da notícia do seu abandono oficial, que deitava por terra qualquer formulação de tese que permitisse a aclamação da minha teoria. Às vezes esquecemo-nos: para um futebolista a carreira é curta e, na maioria das vezes (muito longe das luzes mediáticas), cheia de condicionantes, que vão das lesões à insolvência e insustentabilidade dos clubes. Esquecemo-nos: idolatramos quem resolve os jogos, quem ganha campeonatos, quem ergue as taças, mas os heróis do campo são os que sacrificam a sua vida e a sua saúde pela importância de estar em campo, de defender a sua camisola, por acreditar que, nesse sacrifício, há uma dimensão de libertação que transcende a dor.

Assim era o Mantorras, o homem. Há muito que sabíamos da sua inabilidade física, mas quem não vibrava com a alegria que tinha quando entrava em campo, o êxtase do golo que não raras vezes resolvia partidas, a ingenuidade doce do menino do bairro pobre de Luanda que nunca deixou de ser?
Porque ele merece e porque todos nós, mesmo quando não torcemos pelo Benfica, o merecemos, quero exigir: deixem jogar o Mantorras. Pelo menos mais uma vez. Aos futuros jogadores que fazem o União, gostaria que soubessem que o futebol que interessa é esse, feito de esforço, mas de superação, em nome da alegria maior de cumprir o futebol.

Cito Ary dos Santos, no Retrato do Herói, pensando no Mantorras, o herói:

“Herói é quem morrendo perfilado
Não é santo nem mártir nem soldado
Mas apenas por último indefeso.

Homem é quem tombando apavorado
dá o sangue ao futuro e fica ileso
pois lutando apagado morre aceso.”

Artigo publicado no Jornal UDV Nº 13 de Março de 2011