sexta-feira, dezembro 24, 2010

Como por uma lágrima do Rui Costa

Corria a época de 1991/92, quando na segunda mão das meias-finais da então Taça dos Campeões Europeus, o Marselha jogava contra o Estrela Vermelha de Belgrado e, na roleta russa dos penaltis que decidiria quem ia à final, Dragan Stojkovic, então jogador do Marselha, foi chamado a converter a grande penalidade – recusou-se a marcar contra a sua equipa do coração; na época de 1994/95, no jogo de apresentação do Benfica aos sócios, Rui Costa, então jogador da Fiorentina, marcou um golo e desatou a chorar. Conseguem visualizar estas imagens?

Em tempos de “frutas podres” e da mercantilização humana, esquecemo-nos frequentemente que são os actos de amor e de abnegação que elevam a figura dos indivíduos, mesmo dos mais profissionais e pretensamente isentos, e que definem a imagem que a História – essa brutal avaliadora de personalidades – mostrará de cada um de nós. Essa distinção não tem que estar associada a uma pertença a um clube ou instituição, mas à carga de intensidade que cada um coloca no que faz, sendo verdade que cada um é os actos que pratica e é por eles que será avaliado.

O que é que nos leva a abdicar do nosso conforto para mantermos a nossa estrutura moral, assumindo o direito à recusa ou curvando-nos ao perdão de quem, ainda que momentânea e simbolicamente, magoámos? A fímbria dos indivíduos não é a mesma, mas também por isso a memória colectiva selecciona naturalmente quem pode, ou não, ser recordado. Eu recordei Stojkovic e o Rui Costa pelo insólito emocional, como poderia recordar o Maradona a fazer manguitos na Bombonera ou o Cantona em golpes à Bruce Lee – todos eles, à sua maneira, apenas expressando um profundo amor a algo maior que eles, mas que os eleva para lá das paredes em que nos habituámos a vê-los – e que nos leva a olhá-los fora desses muros, fora dos seus percursos mais ou menos admiráveis, para lhes perdoar tudo em nome do mais que deram: a essência do futebol e da dignidade dos seus artífices e dos seus símbolos.

O ser-humano, mais ou menos racional, é sempre levado por paixões, por impulsos. São elas que definem o sentido, que marcam o momento. Mas a expressão visível - que é a paixão - reflecte (ainda que nem sempre da melhor maneira) a direcção do que nos define, o enquadramento - a longa paciência, segundo Vergílio Ferreira -, que é o tempo e o suor que dedicamos a algo, algo que somos nós, porque crescemos debaixo de um monumento, a ver actuar uma equipa, a comungar certos valores...
Recordo agora outra imagem: eu, à minha dimensão, a marcar com a nossa camisola e alegria um golo ao “meu” Sporting e, à distância destes mais de 15 anos, compreender a importância de ser do União. Algo que me enquadra e que eu não me sinto capaz de trair. De, com uma ligeira vaidade, me fazer pensar em segredo, muito cá só para mim: “Ali fui igual ao Stojkovic e ao Rui Costa!”.

Publicado no Jornal Nº 9 do União Desportiva Vilafranquense de Novembro de 2010

Os Públicos e a Cidade

"(...) Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (...)"

A citação acima é de uma música do Chico Buarque, “Meu Caro Amigo”. Pela lógica directa das palavras subentende-se uma transmissão de coisas que nem se podiam dizer aos amigos e que, por isso, o estado das coisas ditas não sai daquilo do que é óbvio, porque o poder quando é feito para alguns tende a censurar o poder do que está aberto a todos. E, no entanto, inteligentemente, dizem-nos que, lá, “a coisa” estava um breu de palavras cortadas e já ficamos a perceber o que se passa.

A arte, quando mal usada, pode ser opressora. O futebol, como arte que é, não foge à regra. E veja-se a sagacidade com que nos anunciam medidas austeras, assim daquelas de abrir mais buracos no cinto, quando o Benfica ganha o campeonato ou quando a selecção – ao menos ela – parece sair da crise... Aqui ainda podemos falar aos amigos distantes das cores que temos por aqui, mas as cores que nos mostram, bem, debutaram além do que nos contam!
Esta realidade não me faz entender que o desporto é estupidificante. Já compararam o Figo a um poeta do relvado, o Sporting dos anos 1950 era uma orquestra com cinco violinos, a Laranja Mecânica que foi do Cruyff já tinha sido um filme do Kubrick, para mim o tic-tac do Barcelona é uma encenação sem mácula num Teatro Nou perto de todos. Sim, o Cristiano Ronaldo custou um preço obsceno numa economia global em recessão, mas quanto custa um quadro do Picasso? Como dizia o outro: É a economia, estúpido! O facto da economia andar estúpida é outra questão, enfim... Com a mesma naturalidade com que sou inspirado por um quadro feroz, uma dança fluida, uma música harmoniosa, aquela malta que ali está a chutar a bola transmite-me emoções ímpares – tudo isso me faz sentir vivo e um tipo sentir-se vivo é o tradução mais palpável de liberdade e de esperança no futuro. E isso não me pode fazer mais limitado!

Vila Franca é a cidade que deu ao país uma arte que emerge das vivências de quem de Vila Franca era. Como isso não vale pouco, temos por mérito próprio o museu do Neo-Realismo que o atesta. Mas uma cidade não é só a sua história e o seu edificado – é a participação das populações e o apelo à sua criatividade que amassa o composto que faz as cidades pulsarem, que as projecta para lá das suas fronteiras territoriais, que as faz atraentes para os visitantes, que lhes granjeia notoriedade.
Eu não quero falar da crise, do aumento dos impostos, da falta de futuro, da falta de interesse... Olho à volta e vejo associações a sobreviver e a enfrentar os problemas, a mostrar trabalho feito, a construir oportunidades. Corações que bombeiam um sangue de envolvimento que nos fazem mais fortes, mais próximos do que poderemos ser.
O Teatro do Zero (passe a publicidade), sediado na nossa cidade, apresentou, há uns dias, “O Lugar Sagrado” de António Torrado, naquela que foi, digamos, a sua apresentação oficial. A caminho do teatro passei pelo Cevadeiro, à hora em que jogava o União – ambos estavam com muita gente. É disto que estava a falar! O que não estupidifica não enjoa e criar públicos é superar o estado da arte - se “a coisa aqui tá preta” cores destas não são demais.

Publicado no Jornal Nº 8 do União Desportiva Vilafranquense de Outubro de 2010

segunda-feira, outubro 04, 2010

O Coro das Velhas

Num razoável filme de 2005, Russell Crowe interpreta um sofrível boxeur que ficou conhecido como Cinderella Man. A alcunha ofenderia, em circunstâncias normais, qualquer machão briguento na sua orientação libidinal, mas para Braddock (o Cinderella) talvez esse fosse o menor dos seus problemas, e largar a madrasta da vida que tinha valia qualquer ofensa a um qualquer orgulho.

A escalada social, suscitada ou ressuscitada, foi sempre motivo de fabulações – da original Cinderela aos astros do futebol, vamos interiorizando que, por casamento ou deslumbramento, podemos rapidamente “subir na vida”. Nos últimos anos, com a mercantilização e globalização do desporto, a distância que separa um puto ranhoso de ser um herói universal é pois, aparentemente, muito ténue.
No entanto, ainda há umas semanas, Portugal acordou para o Bebé. Assim: das divisões secundárias portuguesas ao colosso Man United em meses! Para os cépticos, fica a prova provada que as histórias de encantar só fazem sentido quando o percurso não é linear e a moça se esquece que chegada à hora devida uma abóbora será sempre uma abóbora. E só muito raramente sobram sapatos de cristal…

Eu ainda joguei à bola na rua! A passagem directa foi para o União, claro, o clube da terra, onde já tinham jogado tios e primos e amigos e amigos de amigos. Só mais tarde é que poderia existir, ou não, assédios de clubes mais fortes.
Mas o futebol de rua morreu – viva a academia! Em poucos anos, a verdade da formação futebolística modificou-se: se o menino gosta de futebol pagam-se fortunas para pôr o menino a frequentar a academia onde um jogador profissional emprega a família; se o menino dá três toques no esférico, é negociá-lo tenramente entre Sportings, Benficas, Reais Madrids ou a ilusão de um equipamento que se lhes assemelhe. Quando o menino hesita, hecatombe – dissolve-se o sonho de alguém, o menino já não será Bola de Ouro… A Cinderela foge descalça do baile, sem nunca ter dançado a sério.

O que é, hoje, o correcto? Não existem respostas absolutas. Mas faz-me verdadeiramente sentido a expressão “jogar em casa” - a confluência de casas de Vila Franca, do Bom Retiro, de Povos, do Monte Gordo, de outros lugares em volta, para a nossa Casa no Cevadeiro, onde as mães e as avós apoiavam o Uu-niii-ãão como quem te chama pelo nome próprio, sem pensarem se aquele menino que corre vai ter namoradas russas e casas na América, receando apenas a brutalidade do central corpulento da equipa contrária que o menino finta. Quando o menino passa ileso, aumenta a ansiedade, ao vê-lo pequeno com as poucas forças que ainda tem para tornar-se depois grande, na alegria de marcar o golo da vitória. No grito que rebenta sobressai o coro das velhas, que reconhecemos como quem nos chama para lanchar, e isso, sim, é estar em casa.

Já começa mais uma época desportiva. À nossa volta proliferam academias de clubes grandes, mas se eu tivesse ainda dez anos ia era para o União – na esperança de que quando, um dia, tivesse trinta, pudesse pensar que o que o desporto me deu não foi apenas um sonho desfeito quando soaram, tarde demais, as badaladas cruas da medianidade, mas um património de amigos que se cumprimentam com alegria na rua e a memória doce da voz da minha avó a apoiar o União, no velho pelado do Cevadeiro.

Publicado no Jornal da UDV de Setembro de 2010

quarta-feira, julho 14, 2010

Do apelo ao New Deal

Um excerto do artigo publicado no Avante! desta semana:

"Estas conquistas só poderão ser alcançadas através de uma enorme luta de classes feita a partir da base. Em caso de vitória, sublinhamos, os ganhos obtidos não terão contudo eliminado os males do capitalismo nem os perigos que ele representa para os povos do mundo. No fim de contas, não há uma verdadeira resposta que não seja o desmantelamento tijolo a tijolo do próprio sistema capitalista e a reconstrução de toda a sociedade nos princípios socialistas. É uma coisa que a grande maioria da população aprenderá sem qualquer dúvida no decurso das suas lutas por um mundo mais igual, mais humano, mais colectivo e mais sustentável. Entretanto, é tempo de iniciar a organização de uma revolta contra o plafonamento imposto pela classe dirigente à despesa pública civil e pela protecção social na sociedade americana."
John Bellamy Foster e Robert W. Mcchesney

quarta-feira, julho 07, 2010

Ir à linha e cruzar...

Durante a década de 90 percorri todos os escalões de formação de futebol da UDV. Por falta de engenho e arte a minha carreira futebolística acabou aí, mas é com orgulho que recordo o peso da camisola que vesti – a nossa e nunca outra, sempre suada quando recolhíamos aos balneários.
A vivência desses anos transmitiu-me valores, que preservo. O principal: a União, pois claro – o que me ligava aos meus colegas, ao clube e à sua história, à cidade onde floresceu e aos frutos que tem dado - elevando as vitórias e encarando as derrotas de cabeça erguida, sabendo que não era só eu, mas que eu éramos todos, naquela camisola vermelha e branca (faço aqui um parêntesis, a bem da verdade, porque nos infantis, o número 11 que normalmente usava tinha debutado e entrei várias vezes em campo em tons cor-de-rosa!).

A União não é apenas o que a cronologia local nos diz: uma fusão de clubes, em busca de maior dimensão. Foi também um sinal dos tempos, a visão dos dirigentes da altura em afirmar que, enfim, juntos somos mesmo mais fortes. A união, então, não era apenas entendida em sentido lato, confundida com unitarismo, com a vénia “sim senhor” tão em voga naqueles tempos conturbados da nossa história, tão em voga também nos dias de hoje – era um assumir que é do confronto leal das diferenças que uma sociedade se moderniza e que a unidade se enriquece e nos enriquece. E só assim a vitória real é possível – não a vitória dos números, que isso é apenas desporto, mas a vitória de sabermos estar a formar mulheres e homens habilitados a participar e a assumir a sua cidadania, a funcionar em equipa, prezando a amizade e a lealdade, rejeitando a subserviência e o interesse unicamente individual.

Os dias de hoje carecem desse espírito. A população é afastada e afasta-se das decisões e, assim, esvaziam-se os valores de pertença em que se formam e reforçam as identidades, onde o sentido democrático das sociedades entorpece de morte.
Evitar esta dinâmica é responsabilidade de todos nós e, por isso, é importante louvar quem ainda dedica as suas horas e as suas capacidades mais brilhantes a construir uma estrutura que nos represente e em que nos possamos rever. Mas não só – é também preciso participar e fazer parte dessa mudança. Este é, desde já, o sucesso “desta” União, cujos resultados já se vêm, mas que importa ainda alargar e capacitar, inovando a sua acção e, dessa forma, fazer face aos desafios (desportivos, e socioculturais) que a complexidade dos “tempos modernos” lhe colocam.

Esta é, agora, a camisola que visto e suo. Encaro-a com a mesma responsabilidade com que vesti a outra (mesmo a cor-de-rosa!). A equipa contrária lançou-se contra nós com todos os seus meios e nós soubemo-nos defender. É preciso surpreender - as pernas ainda têm força por isso faço o que faço melhor: pego na bola e ganho em velocidade, chego à linha de fundo e cruzo. Confio e conheço os meus colegas e sei que vai ser golo...
in Jornal da UDV, nº 6, Junho de 2010

sexta-feira, junho 18, 2010

Os sinos dobram por nós

Penso que este país irá definhar, à medida que os Homens que o fazem morrerem. Ficam as máquinas, os números, os índices, os seres do "sim senhor", do "isto é mesmo assim"... Não me interessa minimamente o que não é substantivo, porque mesmo na diferença só é relevante a diferença que fazemos nos outros, e para isso é necessária humanidade.

O John Donne disse e o Hemingway imortalizou: "não perguntes por quem os sinos dobram; eles dobram por ti." Estranhamente, não sei se com esta inspiração, em 1998 o Saramago lia em Oslo um discurso que todo ele acabava com sinos a rebate, numa evocação de um episódio passado numa aldeia italiana. Não seremos iguais depois de hoje e os sinos dobram por nós.

terça-feira, maio 18, 2010

Entre o individualismo e a individualização

Não posso deixar de partilhar este excerto da obra de Steinbeck, "As Vinhas da Ira". Numa era de individualização, da derrota aparente do colectivismo, da afirmação dos estilos de vida encerrados no "Eu", eis a causa, eis parte da solução - para quem, nas palavras do autor, como Paine, Marx, Jefferson ou Lenine, somos efeitos. Como "nós".

"Um homem, uma família expulsos das suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se, rangendo pela estrada, rumo ao Oeste. Eu perdi as minhas terras; um tractor, um só, roubou-mas. Estou sozinho e desnorteado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu, que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu receias. Aí é que está o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o "eu perdi as minhas terras", rompe-se uma célula e dessa célula rota brota aquilo que tu tanto odeias: o "nós perdemos as nossas terras". Aí é que reside o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos, como um só. E desse primeiro "nós" nasce algo muito mais perigoso: "eu tenho algum pão" mais "eu não tenho nenhum." E o resultado dessa soma é: "Nós temas alguma coisa." Então, a coisa toma um rumo; o movimento passa a ter um objectivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse tractor, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos fixos; atrás, as crianças escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança. A noite desce. A criança constipa-se. Olhe, tome este cobertor. É de lã. Pertenceu a minha mãe. Tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do "eu" para o "nós"."


sexta-feira, maio 14, 2010

A coisa aqui está preta! (2)

"(...) Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (...)"
Meu Caro Amigo, de Chico Buarque

Volto ao tema - e à música do Chico - não porque estou contra as comemorações do título do Benfica, a convocatória do Queiroz, nem sequer por achar ilegítima a dedicação mediática e institucional dada à passagem do Papa pelo "Caixão Vazio", como nos caracterizou o Baptista Bastos.
A questão coloca-se com o aproveitamento desta época de "Fado, Futebol e Fátima", que o fascismo à nossa maneira tão bem sabia propícia à alienação popular, para o Governo anunciar as medidas de austeridade já previstas. Entre comemorações, exultações, expiações, espremem-nos ao cêntimo os tostões e deixam-nos para depois com as reclamações, com tempo para preparar optimistas previsões, das crises bolsistas as evocações, do olvido para os que, através de nós, ganham milhões... E de "ões" em "ões" paro por aqui, antes que do cinto apertado passem para o resto!
A coisa aqui 'tá mesmo preta... Neste país, "nesta cidade" (e aqui, como resposta, em jeito de encenação, entram os Xutos...)