Ao
entender o acesso à cultura e ao pensamento estético como factores
de emancipação dos indivíduos - porque contribui para essa
emancipação o indivíduo saber-se capaz de agir esteticamente -,
temos que entender que as nossas responsabilidades enquanto
criadores, programadores ou dirigentes de organizações culturais,
são responsabilidades políticas. Quando criamos, programamos ou
gerimos uma organização, fazemos opções, que são sempre
ideológicas.
As
colectividades de cultura e recreio, são, como actores sociais,
também ideológicas. Desde o seu surgimento, com a primeira banda
filarmónica a nascer no século XVIII, vieram cumprir esse
papel, sendo as suas estruturas reflexo das dinâmicas
sociais de cada período – tubos de ensaio dos processos de luta de
classes. Quando, nas sociedades feudais e no advento da burguesia, a
criação cultural era um privilégio dessas classes, a criação de
sociedades filarmónicas ou dramáticas veio corresponder às
aspirações das classes mais baixas em fruir e desenvolver aptidões
estéticas e artísticas. Funcionam, como dizia em 1908 o presidente
do Ateneu “como elemento de educação e de estímulo, e
demonstração que as classes populares, operárias e artísticas,
não eram, como as consideravam os elementos conservadores, classes
inúteis e incapazes de colaborarem no progresso da sociedade.” Nesta cronologia que passa pelas lutas liberais, pela emergência
dos ideais socialistas e republicanos, pela concretização da
República, pelo fascismo, o 25 de Abril e, digamos assim, a
consolidação (diluição?) da democracia, existindo na generalidade um sentido interclassista na composição social destas associações, não é raro existir uma diferenciação ideológica, quer entre colectividades, quer dentro da própria colectividade. Não é raro, numa mesma vila ou cidade existirem
duas ou três bandas filarmónicas, que correspondem a diversos
interesses (e aqui, o assumir que não tem interesse é também
defender um interesse), como por exemplo, em Vila
Franca de Xira, a Fanfarra 1º de Maio (que viria a dar origem ao
Ateneu) e Real Sociedade Instrução
Musical Vilafranquense, que em 1891 representavam os ideias republicanos e de apoio à monarquia, respectivamente. Com
a implantação do Fascismo e a instrumentalização pelas
autoridades das associações, é também nas colectividades que a
resistência se afirma, com a orientação de participação nessas
organizações, dinamizando espaços de oposição, eminentemente
culturais, mas que passam a potenciar essa mesma resistência - A
Cultura como uma arma colectiva ao serviço do progresso histórico!
Em Vila Franca e no Ateneu, nos anos 40, são jovens como Alves
Redol, Arquimedes da Silva Santos, Dias Lourenço e
Carlos Pato que protagonizam a criação de bibliotecas, a reanimação
do grupo cénico, a realização de conferências sobre arte e
sociedade, garantem um novo impulso à criação musical, que
dinamizam e impulsionam o movimento neo-realista. Em 1948, o
presidente da direcção, Carlos Pato, é preso a seguir a uma Assembleia Geral
(presidida por Alves Redol), perdendo a vida na sequência dessa
prisão. Ou quando, em 1976, se dá a ocupação do terreno onde viria a ser construída o actual Centro Cultural do Ateneu.
Como referi, se nada se faz sem um cunho ideológico, a gestão de uma organização, a produção e a criação culturais fazem sempre parte e são afirmações de processos políticos. Que se expressam, a maior parte das vezes, pela não participação e pela não criação; e, quando se expressam, na maior parte das vezes, vêm com posições pretensamente neutrais, de entretenimento pelo entretenimento, de agradar a todos e de, especialmente, a quem pode dar mais migalhas (posições que, como também já referi, expressam uma posição, eminentemente passiva face às circunstâncias).
Porquê gerir uma associação? A perplexidade da pergunta é ideologia de montante (antevê dificuldades). Talvez a pergunta seja: quem é que pode, hoje, gerir uma organização asfixiada financeiramente, que vê reduzido o financiamento público ano após ano, que vê as instituições públicas a funcionarem como concorrentes, as instituições privadas sem interesse, os públicos afastados? Só a relação emocional e emocionada de sócios com relação histórica tem mantido as associações populares abertas e a cumprirem o seu objecto social. Mas apenas com a "boa-vontade" não é possível enfrentar (1) a complexificação dos processos de gestão, que exigem uma
profissionalização da estrutura para responder às obrigações
administrativas, à procura de financiamentos e a uma programação adaptada aos espaços e aos públicos, o que não se coaduna com a gestão voluntária feita no horário possível, cada vez mais difícil de conciliar dentro de um colectivo, fruto da
flexibilização do trabalho e da instabilidade da vida profissional
de cada um de nós; (2) a ultra
individualização da sociedade e as alterações sociológicas
promovidas pela desindustrialização e a urbanização desregulada
das últimas dezenas de anos, que provocaram a quebra de laços
históricos da população e um alheamento generalizado em relação
às coletividades locais; (3) o desinvestimento público, mais uma vez, que despreza o serviço público de promover serviços formativos e de fruição na área cultural e desportiva - função social do Estado - preconizado pelas associações populares. A jusante, depois de assumida a responsabilidade, todos estes problemas se concretizam, e intensificam...
Mas assumir a responsabilidade é também um acto de resistência. Lembre-mo-nos: uma associação popular cumpre funções sociais que, na sua essência, correspondem a uma ideologia de
emancipação pela pedagogia estética e pela criação de espaços
de sociabilidade. A
ideologia dominante, por outro lado, promove uma cultura individualista, do it
yourself, fast food, de comando na mão on demand, de sentar no sofá
e não pensar. É natural que a solução para as colectividades se
queira fazer passar por aí - porque é o mais fácil! É programar para vender, criar à
medida do gosto dos outros, na esperança de sobrevivência. Mas essa
não é solução, porque cria apenas soluções imediatas (quando as cria), não estruturais. A
outra opção é fazê-lo com uma cultura popular e ecléctica, na forma e no conteúdo, que
incentive e respeite os criadores, que vá de encontro aos públicos,
mas que os transforme – estética e politicamente. Que chame as
pessoas aos espaços, uma e outra vez, e que lhes crie o gosto de os
ocupar, de participar, de fazer parte. E que as colectividades possam
ser, cada vez mais, centros pedagógicos do Colectivo. Capazes de promover uma sociedade mais justa, participada e solidária.