terça-feira, junho 04, 2013

Reflexões sem Referências

Vivi e visitei várias cidades criativas; entendo, do alto da minha suburbanidade, que a cidade onde comecei a crescer era uma cidade criativa. Da pessoa criativa diz-se ser aquela que selecciona a informação de modo a criar fórmulas inovadoras que respondam a determinadas questões - resolve, portanto, problemas científicos, estéticos ou "correntes" através de soluções disruptivas com as práticas até aí utilizadas.
Uma cidade criativa é aquela que não só permite a criatividade, mas que a incentiva. A cidade onde existem espaços e tempos dinâmicos, pontos de encontro, diversidade cultural, apelos à criatividade.

Dialeticamente, o humano estabelece com o meio interacções que influenciam as suas vivências e as suas opções. Numa contemporaneidade marcada pela individualização e uma reflexividade densa de informação e anómica, o processo criativo perde o seu substrato.
Não entendo a criatividade como rasgos geniais e tiradas de momento, mas como um processo trabalhoso, que surge num contexto propício ao seu aparecimento. Recuso a imagem do indivíduo isolado que arrota um Eureka por cada nova solução; aceito o trabalho solitário e introspectivo, claro, mas o processo criativo deve ser relacional, potenciado pelo ambiente em que o indivíduo se insere, viver de interinfluências, de vivências, que criam pensamento, conceito, crítica, dúvida, afirmação, reformulação, exposição e inovação. A criatividade, a inteligência ou a expressividade são intrínsecos dos indivíduos, independentemente do seu lugar de classe ou do contexto onde vivem. É um dever da sociedade exponenciar essas caraterísticas.
Não entendo também as cidades como aglomerados urbanos, mais ou menos próximos do céu, feitos inorganicamente para empacotar pessoas nos seus lugares, com equipamentos mais ou menos belos plantados à espera de utilidade, à espera que o tempo e o espaço se cumpram. As cidades são seres orgânicos, feitas de gente, moldando gente. São o seu governo, as suas instituições, as suas dinâmicas. Sofrem, na sua organicidade, com a gestão que delas se faz. Morrem sem participação, sem continuidade da história, sem cultura; extinguem-se sem criatividade. É um dever da sociedade gerir a cidade de modo a que nada nela morra sem plausibilidade.

Comecei a crescer numa cidade criativa. Uma cidade com momentos e com espaços que apelavam à criatividade - ruas cheias de amigos, bandas em cada garagem, bares com bebida barata, escolas com projectos fora da escola, meses disto, quinzenas daquilo, semanas daqueleoutro. Apelo à criação, à participação, à ocupação da vida. As pessoas conheciam-se, influenciavam-se, reconheciam-se, convidavam-se, viviam-se. Continuo a crescer nessa cidade, depois de ter passado por outros lados. Acho que cresço pior - menos criativo e mais sozinho. As pessoas à minha volta perderam o hábito das coisas novas, de procurarem coisas novas, de assumirem a coragem de fazer coisas novas. Parecem tristes e estão a partir. E eu com elas, claro!
Quem tem o poder sobre as cidades? Temos todos, pois sim... Mas quem as gere, quem pode esculpir todo este complexo orgânico onde vivemos? Não são as pessoas preocupadas em pagar as contas, não são os comerciantes com as casas já vazias, não são as coletividades soterradas nas suas dívidas e falta de coletivo - é o governo das cidades que pode mudar ou matar de vez as cidades, pois é ele que tem o poder e os meios, uma maior resiliência ao risco e maior tempo para o tempo que é preciso, a obrigação máxima de criatividade, para que se possam criar os espaços e os momentos que promovam contacto, aprendizagem, aglutinação, vontade, solidariedade, criatividade, inovação, sustentabilidade, participação e, como corolário, democracia.

Será esse, talvez, o grande desígnio para resgatar a polis à dormência: a conquista da criatividade! Cidades de homens e mulheres que se sintam cultos e capazes serão cidades com tradição e com um futuro de liberdade.