sexta-feira, janeiro 25, 2013

Um homem na cidade

Há no hábito da noite segredos em cuja narrativa se constroem quimeras. Dormir é uma maré de desperdícios e, nós, os sonâmbulos, temos mais sonhos para contar.

Podia só espremer as palavras do Ary, adicionar-lhes tons citáricos e evocar uma voz profunda. Depois mergulhava no Tejo e deixava que a corrente fizesse a noite por mim. Mas eu sou um homem na cidade com sonhos para contar. Sonhos de nós, amigos, que passamos pelas palavras com a displicência de amantes experimentados; sonhos de ti, mulher de hoje, que me evocas acordares tão mais sinceros; sonhos de mim, balofo de sonhos por cumprir, que adormeço sempre tão triste; sonhos dos homens e das mulheres tristes que na madrugada agarram estilhaços de motivação para cumprir um dia após o outro, a caminho do trabalho que lhes garanta um mínimo de esperança.

A minha vocação é sentir para contar. O meu trabalho é o que faço. E para me cumprir prescindo da especialização - cumpro a especialidade! Sentado, de madrugada, sem cinismos nem inveja, num banco em frente aos barcos de Cacilhas, na lota de Setúbal ou em frente aos comboios de Vila Franca. Frenéticos - porém dormentes - passam neles os que vão trabalhar. Vão, sem ir, sem vontade, sem tempo para voltar. Eu não faço mais nada, tenho todo o tempo para ficar aqui, sozinho, fermentado, como quem faz do que olha um pão de promessas e palavras, como quem procura uma história por contar. Mas sigo passos de segredos, simpatias de rotina - Ó sô Zé, dê-me uma bica rápido, para não perder este; Bom dia, D. Maria, estes bolos são de hoje? - silêncios que nunca mais irei ouvir.

Não tenho que me sentir culpado, ou digo para mim que não me tenho que sentir culpado, porque o meu dever é acabar-me para estar aqui - e sentir os que passam. Para contar. Num poema em que um homem na cidade absorve em si todas as palavras que nunca foram ditas, o aroma das flores que serão primaveras, a ternura das ruas que despertam enquanto o poema se deita acompanhado do acaso.
Eu sinto necessidade de olhar, solidário, os que vão trabalhar. Eu não durmo para os ver. E imagino ser cada um deles - mil vozes fazem a minha imaginação de raciocínios.

E volta a música como volto para casa. Um homem na cidade que vai dormir a cantar. Mas agarrado de medo, congelado da frustração do descanso. Com uma música na cabeça, cheia de rio, trabalho e palavras. Cheio de vontade de sonhar para investir.