segunda-feira, outubro 04, 2010

O Coro das Velhas

Num razoável filme de 2005, Russell Crowe interpreta um sofrível boxeur que ficou conhecido como Cinderella Man. A alcunha ofenderia, em circunstâncias normais, qualquer machão briguento na sua orientação libidinal, mas para Braddock (o Cinderella) talvez esse fosse o menor dos seus problemas, e largar a madrasta da vida que tinha valia qualquer ofensa a um qualquer orgulho.

A escalada social, suscitada ou ressuscitada, foi sempre motivo de fabulações – da original Cinderela aos astros do futebol, vamos interiorizando que, por casamento ou deslumbramento, podemos rapidamente “subir na vida”. Nos últimos anos, com a mercantilização e globalização do desporto, a distância que separa um puto ranhoso de ser um herói universal é pois, aparentemente, muito ténue.
No entanto, ainda há umas semanas, Portugal acordou para o Bebé. Assim: das divisões secundárias portuguesas ao colosso Man United em meses! Para os cépticos, fica a prova provada que as histórias de encantar só fazem sentido quando o percurso não é linear e a moça se esquece que chegada à hora devida uma abóbora será sempre uma abóbora. E só muito raramente sobram sapatos de cristal…

Eu ainda joguei à bola na rua! A passagem directa foi para o União, claro, o clube da terra, onde já tinham jogado tios e primos e amigos e amigos de amigos. Só mais tarde é que poderia existir, ou não, assédios de clubes mais fortes.
Mas o futebol de rua morreu – viva a academia! Em poucos anos, a verdade da formação futebolística modificou-se: se o menino gosta de futebol pagam-se fortunas para pôr o menino a frequentar a academia onde um jogador profissional emprega a família; se o menino dá três toques no esférico, é negociá-lo tenramente entre Sportings, Benficas, Reais Madrids ou a ilusão de um equipamento que se lhes assemelhe. Quando o menino hesita, hecatombe – dissolve-se o sonho de alguém, o menino já não será Bola de Ouro… A Cinderela foge descalça do baile, sem nunca ter dançado a sério.

O que é, hoje, o correcto? Não existem respostas absolutas. Mas faz-me verdadeiramente sentido a expressão “jogar em casa” - a confluência de casas de Vila Franca, do Bom Retiro, de Povos, do Monte Gordo, de outros lugares em volta, para a nossa Casa no Cevadeiro, onde as mães e as avós apoiavam o Uu-niii-ãão como quem te chama pelo nome próprio, sem pensarem se aquele menino que corre vai ter namoradas russas e casas na América, receando apenas a brutalidade do central corpulento da equipa contrária que o menino finta. Quando o menino passa ileso, aumenta a ansiedade, ao vê-lo pequeno com as poucas forças que ainda tem para tornar-se depois grande, na alegria de marcar o golo da vitória. No grito que rebenta sobressai o coro das velhas, que reconhecemos como quem nos chama para lanchar, e isso, sim, é estar em casa.

Já começa mais uma época desportiva. À nossa volta proliferam academias de clubes grandes, mas se eu tivesse ainda dez anos ia era para o União – na esperança de que quando, um dia, tivesse trinta, pudesse pensar que o que o desporto me deu não foi apenas um sonho desfeito quando soaram, tarde demais, as badaladas cruas da medianidade, mas um património de amigos que se cumprimentam com alegria na rua e a memória doce da voz da minha avó a apoiar o União, no velho pelado do Cevadeiro.

Publicado no Jornal da UDV de Setembro de 2010