terça-feira, junho 27, 2006

Timor-Leste a saque!

Face às questões que, nos últimos tempos, têm ocorrido em Timor-Leste, publica-se aqui um artigo de John Pilger.
Antes, gostaria de colocar aqui também algumas meditações que tenho tido nos últimos dias.
De facto, foi com revolta que encarei os acontecimentos recentes em Timor-Leste, onde, para mim, sempre foi claro que se estava perante uma cabala que, primeiro: pretendia afastar o primeiro-ministro Mari Alkatiri; segundo: pretendia provocar eleições antecipadas e aproveitar o efeito negativo na opinião pública para retirar o partido FRETILIN do poder (algo que em circunstâncias normais, nos próximos anos, não conseguiria ser feito de forma democrática).
Nesta cabala participaram de forma inequívoca três unidades fundamentais, timorenses: Xanana Gusmão, Presidente da República (aqui na fotografia ao lado da antiga Secretária de Estado dos Assuntos Externos estado-unidense); Ramos-Horta, minstro dos Negócios Estrangeiros e prémio Nobel da Paz; e Bispos e clérigos católicos, religião maioritária em Timor-Leste.
Em comum, estas três unidades têm um sentido: serem anti-FRETILIN e acreditarem num modelo económico que não era o do governo, mas que vai mais de encontro aos interesses do governo australiano (de alguma forma, seja por casamento ou por necessidade, há sempre alguma coisa que os liga à potência regional). Nesta luta, tudo serviu: instigar à revolta militar; propaganda vilpendiosa; argumentação religiosa de ordem vária, roçando a estupidez mentirosa (veja-se, por exemplo, as acusações de que por o governo estar a mandar estudantes para Cuba, significaria que o muçulmano e comunista Alkatiri estaria a preparar forças para instalar em Timor o comunismo e matar os padres e religiosos). Pronto, entidades tão respeitadas no mundo (até certo ponto, justamente), acabam por ter comportamentos que fariam inveja a Suharto ou a Salazar, os dois ditadores que colonizaram Timor e contra os quais gerações inteiras lutaram.
Aqui fica, então, o artigo anunciado.

Timor Leste: o golpe que mundo não percebeu

por John Pilger

No meu filme de 1994, A morte de uma nação (Death of a Nation) há uma cena a bordo de um avião a voar entre o norte da Austrália e a ilha de Timor. Decorre uma festa; dois homens engravatados estão a brindar-se com champanhe. "Isto é um momento histórico único", exulta Gareth Evans, ministro das Relações Exteriores da Austrália, "um momento histórico verdadeiramente único". Ele e o seu homólogo indonésio, Ali Alatas, estavam a celebrar a assinatura do Tratado do Estreito de Timor (Timor Gap Treaty), o qual permitiria à Austrália explorar as reservas de gás e petróleo no fundo do mar de Timor Leste. O prémio supremo, como disse Evans, eram "zilhões" de dólares.


O conluio da Austrália, escreveu o Professor Roger Clark, uma autoridade mundial em direito do mar, "é como adquirir material a um ladrão ... o facto é que eles não têm direito histórico, nem legal, nem moral sobre Timor Leste e os seus recursos". Debaixo deles jazia uma pequena nação então a sofrer uma das mais brutais ocupações do século XX. A fome imposta e o assassínio extinguiram um quarto da população: 180 mil pessoas. Proporcionalmente, isto foi uma carnificina maior do que aquela no Cambodja sob Pol Pot. A Comissão da Verdade das Nações Unidas, que examinou mais de 1000 documentos oficiais, relatou em Janeiro que governos ocidentais partilharam responsabilidades pelo genocídio; pela sua parte, a Austrália treinou a Gestapo da Indonésia, conhecida como Kopassus, e seus políticos e jornalistas principais divertiram-se junto com o ditador Suharto, descrito pela CIA como um assassino em massa.

Actualmente a Austrália gosta de apresentar-se como um vizinho prestativo e generoso de Timor Leste, depois de a opinião pública ter forçado o governo de John Howard a enviar uma força de manutenção da paz da ONU seis anos atrás. Timor Leste é agora um estado independente, graças à coragem do seu povo e à tenaz resistência dirigida pelo movimento de libertação Fretilin, que em 2001 ganhou o poder político nas primeiras eleições democráticas. Nas eleições regionais do ano passado, 80 por cento dos votos foram para a Fretilin, dirigida pelo primeiro-ministro Mari Alkatiri, um "nacionalista económico" convicto, que se opõe à privatização e à interferência do Banco Mundial. Um muçulmano secular no país sobretudo Católico Romano, ele é, acima de tudo, um anti-imperialista que enfrenta as exigências ameaçadoras do governo Howard por uma partilha injusta das benesses do petróleo e do gás do Estreito de Timor.

Em 28 de Abril último uma secção do exército timorense amotinou-se, ostensivamente acerca de pagamentos. Uma testemunha ocular, a repórter de rádio australiana Maryann Keady, revelou que oficiais americanos e australianos estavam envolvidos. Em 7 de Maio Alkatiri descreveu os tumultos como uma tentativa de golpe e disse que "estrangeiros e gente de fora" estavam a tentar dividir o país. Um documento escapado da Australian Defence Force revelou que o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor Leste é "ganhar acesso" para os militares australianos de modo a que possam exercer "influência sobre os decisores de Timor Leste". Um "neo-con" bushista não teria dito melhor.

A oportunidade para "influenciar" surgiu em 31 de Maio, quando o governo Howard aceitou um "convite" do presidente de Timor Leste, Xanana Gusmão, e do ministro das Relações Exteriores, José Ramos Horta – que se opõem ao nacionalismo de Alkatiri – para enviar tropas para Dili, a capital. Isto foi acompanhado por reportagens tipo "nossos rapazes vão salvar" na imprensa australiana, juntamente com uma campanha de difamação contra Alkatiri como um "ditador corrupto". Paul Kelly, antigo editor-chefe do Australian de Rupert Murdoch, escreveu: "Isto é uma intervenção altamente política ... a Austrália está a operar como uma potência regional ou um hegemonista político que modela a segurança e o porvir político". Tradução: a Austrália, tal como o seu mentor em Washington, tem um direito divino a mudar o governo de um outro país. Don Watson, redactor dos discursos dos antigo primeiro-ministro Paul Keating, o mais notório apologista de Suharto, incrivelmente escreveu: "A vida sob uma ocupação assassina pode ser melhor do que a vida num estado fracassado..."

Ao chegar com uma força de 2000 homens, um brigadeiro australiano voou de helicóptero directamente para o quartel general do líder rebelde, major Alfredo Reinado — não para prendê-lo pela tentativa de derrubar um primeiro-ministro democraticamente eleito, mas para cumprimentá-lo calorosamente. Tal como outros rebeldes, Reinado foi treinado em Canberra.

Dizem que John Howard ficou agradado com o título de "vice-xerife" do Pacífico Sul, atribuído por George W. Bush. Recentemente ele enviou tropas para reprimir uma rebelião nas Ilhas Salomão, e oportunidades imperiais acenam em Papua Nova Guiné, Vanuatu e outras pequenas nações insulares. O xerife aprovará."
22/Junho/2006