Era uma vez um país como os
outros, onde a vida se desenvolveu como tinha de ser, com clima adequado às
suas latitudes, que foi colónia de quem podia, que foi império dentro de casa,
república das frutas que merece, ditadura civil e militar, hoje democracia
civil e como se quer, com pobres e ricos mas mais pobres que ricos, enfim, como
eu disse, um país como os outros.
Era uma vez um país como os
outros, habitado de norte a sul e de oeste a leste, com cidadãos uns mais que
outros, partidos políticos à esquerda, partidos políticos à direita, muitos
partidos políticos de coisa nenhuma que é outra forma de ser de direita, muita
gente contra os partidos políticos por serem todos iguais que é outra forma de
fazer com que nada mude, um país com imprensa livre para escrever aquilo que as
administrações das empresas donas da imprensa definem, e empresas de sondagens,
e empresas de marketing, e muitas pessoas inteligentes que dizem aos cidadãos e
aos cidadãos um pouco menos que os outros se devemos comer chocolate ou
beterraba, qual a moda da estação, se votamos rosa ou azul (vermelho nunca!), o
que temos de dizer para parecermos, à saciedade, pessoas inteligentes.
Era uma vez um país como os
outros e nesse país como nos outros eu tenho uma posição, uma ambição, uma
visão do que pode esse país como os outros se vir a tornar. Nesse país governou
muita gente, como noutros países. No meu país, também governaram muitos
governos e, era uma vez, esses governos contribuíram para muitos crescimentos –
dos impostos, do desemprego, da emigração, da pobreza, da insegurança, da
desesperança. Imagino se no meu país, nos últimos 12 anos:
- O PIB tivesse triplicado, assim
como o PIB per capita;
- Os lucros das três entidades
financeiras públicas, passassem de 184 milhões de euros, 367 milhões e 667
milhões de euros, respectivamente, para 2,7 mil milhões, 5,3 mil milhões e 2,23
mil milhões de euros;
- A produção agrícola tivesse
praticamente duplicado, passando de 97 milhões de toneladas para 188 milhões;
- O investimento estrangeiro tivesse
crescido mais de 380 por cento, as reservas internacionais aumentaram mais de
1000 por cento e a proporção da dívida face a estas tivesse passado de 557 por
cento para 81 por cento;
- O total de empregos criados
tivesse passado de 627 mil para 1,79 milhões, anualmente, contribuindo para a
queda do desemprego de 12,2 por cento para 5,4 por cento;
- O número de falências tivesse
caído cinco vezes, o salário mínimo passou de 66,7 para 241 euros (praticamente
duplicou a capacidade aquisitiva de bens do cabaz básico), e a inflação média
anual tivesse descido de 9,1 por cento para 5,8 por cento;
- Existisse um programa
Universidade Universal a entregar 1,2 milhões de bolsas de estudo e os
estudantes do Ensino Superior passassem de 583 mil para mais de um milhão;
- Existisse um programa de
capacitação técnico-profissional que envolvesse seis milhões de pessoas, e uns
programas Direito à Casa e Direito à Luz que beneficiam 1,5 milhões de famílias
e 9,5 milhões de pessoas, respectivamente;
- Tivessem sido criadas quase
6500 creches, contratados 14 mil médicos beneficiando 50 milhões de pessoas, e
22 milhões de pessoas tivessem sido arrancadas da miséria extrema;
- Os indicadores de desigualdade
social tivessem caído 11,4 por cento, a taxa de pobreza passou de 34 por cento
para 15 por cento, e a de pobreza extrema de 15 por cento para 5,2 por cento;
- A mortalidade infantil tivesse
passado de 25,3 por mil para 12,9 por mil, os gastos públicos em Saúde tivessem
passado de 9,3 mil milhões para 35,3 mil milhões de euros, e os em Educação de 5,7
mil milhões para 31,3 mil milhões de euros;
- As comarcas de justiça central
tivessem passado de 100 para 513 e as operações da polícia central de 48 para
quase 1300.
Imaginar que no meu país, com a devida diferença de números, isto tivesse acontecido nos últimos 12 anos, deixa-me com um sorriso. Talvez por isso, nos últimos anos, era uma vez, tanta gente do meu país foi para esse e outros países iguais aos outros.
Deveria existir um universo com
matemática poética e umbigos de gelo. Aí a estatística cantaria e a demagogia
seria tão abjeta como o preconceito.
Diria a história, se ela falasse
por voz própria, que as sociedades caminham para a equalização. No meu país há
uma linha torta nesta escrita, um passo atrás no que diria a história, se ela falasse
por voz própria. No outro país de era uma vez, não sei se alguém escreve certo,
mas as estradas dão a quem a percorre o sentido do sentido que daqui a alguns
anos se dará ao caminho. O que é certo? Certo é valermos pelo que fazemos e não
pela qualidade do colchão em que nascemos; certo é buscarmos a independência e
recusarmos os impérios, mesmo quando são os nossos; certo é um homem ou uma
mulher poderem recusar ser escravos; certo é culpar a exceção, não a regra; certo
é ter em cada homem um irmão, que defendemos independentemente da sua posição de
classe, de credo, de ideologia ou da quantidade de erros que tenha cometido;
certo é não julgarmos o universo pelo tamanho do nosso umbigo. Deveria existir uma
Declaração Universal da Ética Humana, que dispensasse de uma vez o conceito de
tolerância; que sublimasse a arrogância do certo e do errado. Mais que uma
declaração dos direitos: era uma vez o direito à concentração de arrogância travestida
de ações da NASDAC e de dívida privada assumida publicamente com carimbo do
Fundo Monetário Internacional, perante os quais todos os outros direitos não
existem – esta é a história com que nos deitamos todos os dias.
Nestas coisas do deve e do haver,
todos errámos. Um país como os outros, partidos como os outros, pessoas como as
outras. Todos erramos. Nem se coloca a questão de quem errou mais ou menos –
errar é errar. Era uma vez um país e uma eleição. Discutem-se projetos,
discute-se um futuro. Diria a história, se ela falasse por voz própria, que as sociedades
caminham para a equalização, mas é raro o caminho fazer-se a direito – o que
não é a mesma coisa que retroceder.
Era uma vez um país como os
outros, que não voltou atrás. É com esta história que quero adormecer dia 26.