quinta-feira, agosto 29, 2013

I have a dream

"I still have a dream, a dream deeply rooted in the American dream – one day this nation will rise up and live up to its creed, 'We hold these truths to be self evident: that all men are created equal.' I have a dream . . ." Martin Luther King Jr, 1963

Hoje que se comemoram 50 anos sobre o belo, o intemporal, o mítico discurso de Martin Luther King, no término da Marcha dos Direitos Civis, penso que o mundo mudou muito, nestes 50 anos. Mudou muito...

Penso, também, no lírico comentário jornalístico que escutei no telejornal da RTP e que me ficou colado à indignação durante este tempo - a jornalista talvez procurando um remate que poeticamente se equivalesse ao conteúdo do discurso - referindo que "o sonho se concretizou". Ingenuidade? Como adjetivei, lirismo? Longe de mim podar a liberdade jornalística, mas em nome do respeito e compromisso que dedico à luta histórica pelos direitos civis, dos homens e mulheres de todas as cores, credos ou ideologias, em nome desses homens e dessas mulheres, e em nome desse sonho, entendo que deveria ser criada a figura do Provedor do Enquadramento Histórico.

Eu até entendo que a jornalista em questão, que eu não consigo identificar, ainda está extasiada com o efeito Obama. Ela, como tantos outros: "Pronto, aconteceu!, o homem é preto, cumpriu-se a profecia - Hossana! Hossana! Aleluia!! Podemos ir para casa descansados...". Até porque, socorrendo-me da figura do Provedor por mim criada, o sonho do Obama - não fosse o caso de ter andado desatento com qualquer coisa - foi assinalado na notícia seguinte, fato que exigia, mas agora próximo, muito próximo, do primeiro presidente estadunidense negro, a presença do dito Provedor!

Para que conste: não gosto de armas químicas e chateiam-me as pessoas que as têm. Passa-se o mesmo com as nucleares e em geral desconfio de quem carrega algo com um impato mais massivo que uma faca de cozinha.
Mas: onde é que já vi isto antes? Afeganistão? Iraque? Líbia? Em sonhos? Felizmente, dizem, o ataque à Síria vai ser cirúrgico e rápido - "um ou dois dias" -, incidindo nas instalações onde essas armas são produzidas. Felizmente, outra vez vez felizmente, os mísseis estadunidenses são tão poderosos e precisos que duvido que, nos escombros, descubram vestígios de armas químicas! Um sonho de operação...
Mas, meu caro Provedor do Enquadramento Histórico (que bom é ter alguém em quem pôr as culpas!), o que costuma acontecer depois? Ah.. pois é! Vi na notícia a seguir que hoje no Iraque houve um atentado que matou 60 traba-
lhadores; e que as coisas no Egipto, ui!, não andam bonitas. E que, há uns meses, os franceses tiveram que ir ao norte do Mali buscar as armas (químicas?) que tinham emprestado aos libertadores líbios que afinal parece que não eram assim tão líbios; e que já se discute o que vai acontecer com as armas que o "ocidente" ofereceu aos libertadores sírios que parece que nem são assim todos tão sírios; que alguns observadores da ONU não têm tanta certeza assim sobre quem tem as armas químicas, mas que a decisão será rápida e precisa; que as coisas se tornam, globalmente, muito perigosas; que nada melhor que uma Guerra Mundial para relançar a economia. Ah, pois é...

Hoje, especialmente, também tenho um sonho e quero dizer que tenho um sonho. Um que não envolve nem imbecis nem imbecilidades de qualquer espécie - jornalística, militar ou política. Nem armas químicas.

terça-feira, junho 04, 2013

Reflexões sem Referências

Vivi e visitei várias cidades criativas; entendo, do alto da minha suburbanidade, que a cidade onde comecei a crescer era uma cidade criativa. Da pessoa criativa diz-se ser aquela que selecciona a informação de modo a criar fórmulas inovadoras que respondam a determinadas questões - resolve, portanto, problemas científicos, estéticos ou "correntes" através de soluções disruptivas com as práticas até aí utilizadas.
Uma cidade criativa é aquela que não só permite a criatividade, mas que a incentiva. A cidade onde existem espaços e tempos dinâmicos, pontos de encontro, diversidade cultural, apelos à criatividade.

Dialeticamente, o humano estabelece com o meio interacções que influenciam as suas vivências e as suas opções. Numa contemporaneidade marcada pela individualização e uma reflexividade densa de informação e anómica, o processo criativo perde o seu substrato.
Não entendo a criatividade como rasgos geniais e tiradas de momento, mas como um processo trabalhoso, que surge num contexto propício ao seu aparecimento. Recuso a imagem do indivíduo isolado que arrota um Eureka por cada nova solução; aceito o trabalho solitário e introspectivo, claro, mas o processo criativo deve ser relacional, potenciado pelo ambiente em que o indivíduo se insere, viver de interinfluências, de vivências, que criam pensamento, conceito, crítica, dúvida, afirmação, reformulação, exposição e inovação. A criatividade, a inteligência ou a expressividade são intrínsecos dos indivíduos, independentemente do seu lugar de classe ou do contexto onde vivem. É um dever da sociedade exponenciar essas caraterísticas.
Não entendo também as cidades como aglomerados urbanos, mais ou menos próximos do céu, feitos inorganicamente para empacotar pessoas nos seus lugares, com equipamentos mais ou menos belos plantados à espera de utilidade, à espera que o tempo e o espaço se cumpram. As cidades são seres orgânicos, feitas de gente, moldando gente. São o seu governo, as suas instituições, as suas dinâmicas. Sofrem, na sua organicidade, com a gestão que delas se faz. Morrem sem participação, sem continuidade da história, sem cultura; extinguem-se sem criatividade. É um dever da sociedade gerir a cidade de modo a que nada nela morra sem plausibilidade.

Comecei a crescer numa cidade criativa. Uma cidade com momentos e com espaços que apelavam à criatividade - ruas cheias de amigos, bandas em cada garagem, bares com bebida barata, escolas com projectos fora da escola, meses disto, quinzenas daquilo, semanas daqueleoutro. Apelo à criação, à participação, à ocupação da vida. As pessoas conheciam-se, influenciavam-se, reconheciam-se, convidavam-se, viviam-se. Continuo a crescer nessa cidade, depois de ter passado por outros lados. Acho que cresço pior - menos criativo e mais sozinho. As pessoas à minha volta perderam o hábito das coisas novas, de procurarem coisas novas, de assumirem a coragem de fazer coisas novas. Parecem tristes e estão a partir. E eu com elas, claro!
Quem tem o poder sobre as cidades? Temos todos, pois sim... Mas quem as gere, quem pode esculpir todo este complexo orgânico onde vivemos? Não são as pessoas preocupadas em pagar as contas, não são os comerciantes com as casas já vazias, não são as coletividades soterradas nas suas dívidas e falta de coletivo - é o governo das cidades que pode mudar ou matar de vez as cidades, pois é ele que tem o poder e os meios, uma maior resiliência ao risco e maior tempo para o tempo que é preciso, a obrigação máxima de criatividade, para que se possam criar os espaços e os momentos que promovam contacto, aprendizagem, aglutinação, vontade, solidariedade, criatividade, inovação, sustentabilidade, participação e, como corolário, democracia.

Será esse, talvez, o grande desígnio para resgatar a polis à dormência: a conquista da criatividade! Cidades de homens e mulheres que se sintam cultos e capazes serão cidades com tradição e com um futuro de liberdade.

sexta-feira, maio 31, 2013

Pedir saudades

"Tenho essa fotografia e a herança genética entretanto mutante de um canto feito de milhões de chilreares.  Vim aqui por saudades e para procurar essa herança. Sabe?, este ramo é um trapézio de esperança, onde dezenas de trapezistas construíram curiosidade. Depois ânimo; depois um voo maior que eles. Não quero falar do que não sei, mas porque é que não sei? Não eclodi eu desse ovo libertado que se espraiou destas aves para as praças e para as avenidas, numa ânsia de ser chocado?"

in "Largo dos Pássaros", peça de actos em construção. 

sexta-feira, abril 26, 2013

Abril é nosso!

O programa das comemorações do 25 de Abril que se me apresentava para hoje, não era extenso, mas era oficial e, de certa forma, formalmente sentido - só não me fazia sentido.

Perdeu-se a espontaneidade alegre das comemorações de Abril, aquela força da evocação de algo que nos preenchia, que era maior que nós e que por isso se revestia de um poder simbólico que pedia envolvimento, pedia povo, pedia rua, exigia exaltação. O simbolismo dessa evocação, dessa comemoração, acompanhou em intensidade, materialmente falando, um regresso - tão penoso para muitos tantos - a um tempo formal, austero, castrador onde "... havia homens que comiam tanto tanto que todo o corpo podia ser estômago; outros, não tinham nada para lá meter."

 Este 25 de Abril, em Vila Franca, quis que fosse de rua, de novo. Meses andei, de braço dado com outros, a construir cultura, a fazer teatro, a exercer liberdade para mim e para os outros. O meu direito e o meu dever era alargar esse exercício, hoje, 25 de Abril, 39 anos depois, a quem quisesse vir comemorar a Revolução - nas ruas, nas coletividades, aberto, informal, livre - com outros. Hoje, portanto, houve "Barrigas e Magriços" no Ateneu - Manhã de Abril! Dia de Abril, concretizado no Desfile em Lisboa e com O Subterrâneo, novamente no Ateneu - com outros: amigos, camaradas, irmãos de sonhos e ambições de liberdade e criação.
Faltei às evocações formais, mas Abril não são discursos fechados e um cravo na lapela engomada, uma vez por ano! Nem é o argumento vazio de que Abril é todos os dias, porque se vota e se pode dizer o que se pensa e ah e tal! Abril é sempre porque o defendemos, porque nos recordamos e porque o podemos repetir. Porque o devemos repetir!

Hoje, Abril foi mais nosso!

quinta-feira, março 28, 2013

Dia Mundial do Teatro


Comemorou-se, ontem, o Dia Mundial do Teatro. Partilho, aqui, a mensagem do Dario Fo, que tive a honra de ir a palco ler, antes da apresentação do espectáculo do Teatro do Zero - T'Ulisses.

O Teatro é uma arma poderosa e nós, os agentes de teatro, temos esse poder - de ainda assim encher salas e inquietar as almas. E temos a suprema força de nos inquietarmos quando, mesmo cansados ou desiludidos, o fazemos com os outros. Pisar o palco é dar o corpo e a voz pelos outros.
Talvez por isso... Bem, entendo que o texto do Dario Fo diz o que queria dizer.

"Há muito tempo atrás, o poder instituído, numa prova de intolerância, tomou a decisão de expulsar os comediantes do país.
Hoje em dia os atores e as companhias de teatro debatem-se com muitas dificuldades para encontrar espaços, teatros e públicos, tudo por causa da crise. Os governantes já deixaram de se preocupar com o controlo sobre todos aqueles que se exprimem com sarcasmo e ironia, uma vez que está a deixar de haver lugar para os atores e nem sequer há público a quem se dirigirem. Durante o Renascimento, pelo contrário, em Itália, os que estavam no poder tiveram de fazer um esforço significativo para manterem à distância os comediantes, pois estes atraíam bastante público.
É sabido que o grande êxodo dos atores da Commedia dell’Arte sucedeu no século da Contra-Reforma no qual as autoridades decretaram o desmantelamento de todos os espaços de teatro, especialmente em Roma, onde estes foram acusados de ofender a cidade santa. Em 1697 o Papa Inocêncio XII, sob a pressão dos sectores mais conservadores da alta burguesia e de altos dignitários do clero, ordenou a demolição do Teatro Tordinona, onde, de acordo com os moralistas, se exibiam as peças mais obscenas.
Na época da Contra-Reforma o cardeal Carlos Borromeo, que exercia no norte de Itália, empenhou-se na redenção dos “filhos de Milão”, estabelecendo uma clara distinção entre a arte, como máxima expressão de educação espiritual, e o teatro, como a manifestação do profano e da vaidade. Numa carta dirigida a um dos seus colaboradores, que cito de memória, manifesta-se mais ou menos assim: “os que estão decididos a erradicar as ervas daninhas, têm feito o possível para queimar textos contendo discursos infames, para os extirpar da memória dos homens, e também perseguir todos aqueles que divulgam esses textos impressos. É evidente que, enquanto dormíamos, o diabo porfiava com astúcia. Quantas vezes mais penetrante é o que os olhos podem ver do que o que podem ler nesses livros. Até que ponto é mais devastadora para a mente das crianças e dos adolescentes a palavra falada e o gesto apropriado, do que uma palavra morta impressa num livro? Por isso é urgente afastar as gentes do teatro das nossas cidades, como fazemos com as almas indesejadas.”
Assim sendo, a solução contra este estado de coisas, baseia-se na esperança de que surja um grande movimento contra nós e contra os jovens que desejam aprender a arte do teatro: uma nova diáspora de comediantes, de fazedores de teatro que, partindo de tal imposição, poderá fazer nascer um novo conceito de representação."
Dario Fo
(tradução de Fernando Rodrigues)

quarta-feira, março 06, 2013

Reflexões de 6 de Março

A vida é o direito mais basilar e essencial da existência terrena, sobre o qual todos os outros direitos (e deveres) assentam. O silogismo não é complicado, mesmo considerando inevitáveis gradações do conceito vida; e todas as formas de vida; e todas as etereadades que, uns e outros, garantem à vida, aqui e depois.
João Cabral de Melo Neto dizia:

"(...) é difícil defender, 
só com palavras, a vida, 
ainda mais quando ela é 
esta que vê, severina 
mas se responder não pude 
à pergunta que fazia, 
ela, a vida, a respondeu 
com sua presença viva.


E não há melhor resposta 
que o espetáculo da vida: 
vê-la desfiar seu fio, 
que também se chama vida, 
ver a fábrica que ela mesma, 
teimosamente, se fabrica, 
vê-la brotar como há pouco 
em nova vida explodida 
mesmo quando é assim pequena 
a explosão, como a ocorrida 
como a de há pouco, franzina 
mesmo quando é a explosão 
de uma vida severina."


A vida é o grande palco. E, eh pa, vale a pena ser vivida - no êxtase e na angústia, no grito e no silêncio, no emaranhado das dúvidas e no passo para a realização, no medo que nos paralisa e no medo que nos faz avançar (a que tantas vezes chamamos coragem). É a grande explosão de cor, o carnaval no mundo, o que está aí a nos responder, liminarmente, que é por este direito que nos cumprimos.


Mais complicado, ou discutível, é dizer que a vida não é um valor absoluto e sequer está no topo na pirâmide dos valores. Digo eu: o conceito de vida é imensamente relativo. De outro modo, não existiam homens que davam a vida. Assim: dar a vida. Acaba. Recicla-se. Pronto. Ponto. E o que fica? O que fizemos. O que fizemos com os outros valores, é verdade que também eles relativos, que superam o de vida, pelos quais abdicamos do primeiro e mais fundamental direito que recebemos à nascença. Dá-se a vida por Amor, pela Liberdade, pela Pátria, pela Dignidade, pelo Futuro. Cada um é para o que se faz.
Uma pessoa apenas é uma onda, mas duas já são um mergulho. E vale a pena multiplicar os mergulhos. Um aglomerado de viventes faz um quadro dinâmico, frenético. E por isso, para a continuação dos mergulhos, para o insuflar das marés, há homens e mulheres que dão a vida. Ou, pelo menos, a isso a dedicam, como bens maiores que eles. Raros? Por o serem, sim. E quando, nestes casos, a vida é extinta, pronto... Ponto. Fica tudo o que está acima de nós e para o qual contribuímos. Fica. A narrativa continua.
O futuro não pertence a ninguém. Mas está mais próximo de quem o constrói. E mais blindado ao passado quando se constrói com os outros. Tudo o mais, é o que por que lutamos. O melhor de tudo, é que a narrativa continua sem nós.

Hasta Siempre, Comandante Chavez!

Grande mar do PCP, desde há 92 anos:

Deste-me a fraternidade para com o que não conheço.
Acrescentaste à minha a força de todos os que vivem.
Deste-me outra vez a pátria como se nascesse de novo.
Deste-me a liberdade que o solitário não tem.
Ensinaste-me a acender a bondade, como um fogo.
Deste-me a rectidão de que a árvore necessita.
Ensinaste-me a ver a unidade e a diversidade dos homens.
Mostraste-me como a dor de um indivíduo morre com a vitória de todos.
Fizeste-me edificar sobre a realidade como sobre uma rocha.
Tornaste-me adversário do malvado e muro contra o frenético.
Fizeste-me ver a claridade do mundo e a possibilidade da alegria.
Tornaste-me indestrutível, porque, graças a ti, não termino em mim mesmo.

(Ao meu Partido, Pablo Neruda)

"... um dia vamos mesmo ter de partí-lo"


Penso tantas vezes em coisas parecidas com aquelas aqui partilhadas pela Joana Manuel.

Eu que digo sempre tantas coisas, calo-me e oiço:


quarta-feira, fevereiro 27, 2013

Grandolangular

Eppur si muove, ensinou-nos um homem que, ao espreitar pela boca da serpente, nos viu tão pequenos e transrotacionais como outra coisa qualquer que não seja o sol (e mesmo esse!); e ao nos ver assim, pequenos, nos fez dar passos pequenos em frente, ao ritmo dos passos de um coro alentejano, muitos passos pequenos pisando lentamente a terra como quem inicia grandes viagens.

Isto não acabou! A história está aí para quem a quiser ver. O futuro é o amanhã que espreitamos, por um buraco pequeno de uma reflex, com uma objetiva grande angular, para o vermos largo - já ao largo! - e não perdermos nada do que ele nos traz, nem deixarmos que alguém, outra vez, impeça que se faça futuro. E ainda virá a boçalidade, a descrença, a traição, a divisão - inquisições por homens e mulheres cheios da religiosidade do tempo. E virá quem não vê que os passos estão unidos e que o rumo se move. Ontem no entanto, hoje portanto.

Novos verbos com velhos símbolos. Cidades que ordenam ruidosamente o silêncio aos tribunos da austeridade, aos trambiqueiros, aos possessos do mercado, aos eunucos bem comportadinhos que querem deixar o lobo zurrar. Grândola Vila Morena cantada contra o medo - atirada de frente, como escudo e lança, contra a medievalização da terra. Tomem lá!

Grandolemos, Grandolizemos, Grandoloquentemos. Tiremos o retrato do futuro nesta Grandolangular! "O Povo é quem mais Ordena!"

quarta-feira, fevereiro 06, 2013

À flor da pele

Não procuro sair de cena, nem me aconchegar no silêncio. Podia só dizer isto e ficava assim, sem narração nem palco, mas há melodia desde que acordo - tons suaves, trinados gota-a-gota primeiro, que se adensam e nitidificam depois, até serem música completa, pauta exposta ao pensamento, emoções tipificadas no que de emoções vive quem se entrega a elas.

Há coisas que mais vale contar logo. Abrir portas à fala, mesmo que a soluços, mesmo correndo o risco que a música não nos saia da cabeça e sermos apanhados distraídos num ritmo que não nos identifica. Ridículo... Ridículo? Pelo menos não é perder tempo, quando vagueamos nos nossos discos e nas nossas cifras à procura da música que nos persegue, para a reconhecer no que somos e, mesmo assim, não nos identificarmos. Ou é perder tempo... Perder tempo a procurar.
Temos feito isso todas as sextas-feiras, quando nos colocamos debaixo do foco sem ensaio e toda a voz, dos agudos aos graves, estremece; todos os dedilhados saem na corda ao lado, criando estridências absurdas; ninguém do público nos presta atenção e nós queremos contar logo, contar tudo, tudo o que está à flor da pele e pede para ser partilhado; e humilhados, fracos e fracassados, nos retiramos até que a vontade de voltar seja mais forte que qualquer embaraço.
E a vontade volta sempre, não há como fugir, como na alegoria gasta do inseto contra o foco. E nós voltamos - iguais.

Há coisas que não vale a pena contar. Como fugir para procurar outro espaço onde a desafinação não entre. Acordam-nos e estamos longe, estamos nus e já não estamos. O mesmo ritmo, mesmo quando não nos identifica, ganha traços de personalidade - que choca com a nossa, heterofágica. A caixa da viola bate com estrondo no nosso joelho, potenciando um silêncio maior do que o não passarmos despercebidos. Procuramos, na ânsia da música, um tempo que não nos esfrie e, enfim, a harmonia que nos caraterize. E calamo-nos - é o nosso segredo! - porque não queremos assustar quem não se limitou a ver-nos passar.
Já saímos, a viola aos ombros na esperança de que alguma coisa se glorifique, já esquecemos o frio e as promessas que tivemos medo de fazer; bebemos algo e bebemos mais. A luz chama, a luz estica-nos a mão, mas agora é a sombra, é recuperar a sombra onde fomos intensos e deixar que um qualquer reflexo dourado não nos distraia.
Voltamos à luz. Ao palco, ao erro. Primeiro uma palavra e um tom subtil em Lá, como diapasão, onde afinamos a nossa disponibilidade. Há alguém que já nos olha, sem rancor - é para ela que não vamos voltar. Lembras-te do ensaio? Não há medo, em cada momento a ausência é corrigível e a narrativa segue o trajeto das declinações. Lembramo-nos do ensaio e estamos prontos a saltar, como no inevitável de nos termos encontrado sem mentira.

É como se já fosse sexta-feira e é um bom dia para sermos nós. Abre-se a cortina e:



sexta-feira, janeiro 25, 2013

Um homem na cidade

Há no hábito da noite segredos em cuja narrativa se constroem quimeras. Dormir é uma maré de desperdícios e, nós, os sonâmbulos, temos mais sonhos para contar.

Podia só espremer as palavras do Ary, adicionar-lhes tons citáricos e evocar uma voz profunda. Depois mergulhava no Tejo e deixava que a corrente fizesse a noite por mim. Mas eu sou um homem na cidade com sonhos para contar. Sonhos de nós, amigos, que passamos pelas palavras com a displicência de amantes experimentados; sonhos de ti, mulher de hoje, que me evocas acordares tão mais sinceros; sonhos de mim, balofo de sonhos por cumprir, que adormeço sempre tão triste; sonhos dos homens e das mulheres tristes que na madrugada agarram estilhaços de motivação para cumprir um dia após o outro, a caminho do trabalho que lhes garanta um mínimo de esperança.

A minha vocação é sentir para contar. O meu trabalho é o que faço. E para me cumprir prescindo da especialização - cumpro a especialidade! Sentado, de madrugada, sem cinismos nem inveja, num banco em frente aos barcos de Cacilhas, na lota de Setúbal ou em frente aos comboios de Vila Franca. Frenéticos - porém dormentes - passam neles os que vão trabalhar. Vão, sem ir, sem vontade, sem tempo para voltar. Eu não faço mais nada, tenho todo o tempo para ficar aqui, sozinho, fermentado, como quem faz do que olha um pão de promessas e palavras, como quem procura uma história por contar. Mas sigo passos de segredos, simpatias de rotina - Ó sô Zé, dê-me uma bica rápido, para não perder este; Bom dia, D. Maria, estes bolos são de hoje? - silêncios que nunca mais irei ouvir.

Não tenho que me sentir culpado, ou digo para mim que não me tenho que sentir culpado, porque o meu dever é acabar-me para estar aqui - e sentir os que passam. Para contar. Num poema em que um homem na cidade absorve em si todas as palavras que nunca foram ditas, o aroma das flores que serão primaveras, a ternura das ruas que despertam enquanto o poema se deita acompanhado do acaso.
Eu sinto necessidade de olhar, solidário, os que vão trabalhar. Eu não durmo para os ver. E imagino ser cada um deles - mil vozes fazem a minha imaginação de raciocínios.

E volta a música como volto para casa. Um homem na cidade que vai dormir a cantar. Mas agarrado de medo, congelado da frustração do descanso. Com uma música na cabeça, cheia de rio, trabalho e palavras. Cheio de vontade de sonhar para investir.