domingo, julho 15, 2012

Que Fazer?

A infalibilidade dos livros: fazer-nos pensar. A sério, mesmo os maus! O fim da leitura é o fim do diálogo.

Este fim-de-semana foi uma barrigada de teatro, para usar a expressão da Flôr. Ontem, fui ao Festival de Teatro de Almada, com a confiança de quem volta a casa, certo da qualidade do que iria  ver. E não me arrependi.

O espectáculo Que Faire?, pelo Théatre Dijon Bourgogne, foi uma discussão com a história, através dos livros redescobertos. E a história trouxe-nos aonde? Tantas palavras desenquadradas dos conceitos - o que é o totalitarismo, a democracia, a "liberdade, igualdade, fraternidade"? As revoluções passaram e as revoluções que consequências trouxeram? E, que faire?, reutilizando a velha expressão de Lenine? Os manuais estão aí, as palavras são para ser usadas, os direitos para serem cumpridos e as Constituições são para ser usadas. E é constitucional mudarmos isto tudo!
Neste contexto, direi apenas que tivessem ido ver a peça; outros dias falarei do que faire.

Grandes, grandíssimos actores. Pena as legendas não conseguirem acompanhar os diálogos (a minha chamada de atenção à CTA). E pena o meu francês estar pelas horas da amargura (uma muito séria chamada de atenção para mim, que tenho que recuperar rapidamente a fluência na língua de Molière). Daí não conseguir explicar porque tenho pena que o espectáculo me ter parecido ter uma narrativa descontínua, enorme nos quadros, diálogos mas a espaços com uma ligação confusa. Nada que tenha estragado o momento.

Aqui fica um excerto.

A ética permite a vingança

A amizade é o sentimento mais nobre que se estabelece entre dois seres humanos. É mesmo o mais sólido - aquele que atravessa as alegrias, as agruras, a distância, o silêncio, para se reencontrar numa mesma empatia sem tempo, onde a partilha começa a cada vez que a amizade se materializa como se não tivesse havido sequer uma interrupção no diálogo. A amizade é maior que diferenças de raça, ideológicas ou clubísticas; os amigos encontram-se como são e só se separam quando deixam de ser -  só a traição quebra esta elo.

A nobreza, não no sentido nobiliástico mas no de carácter, está em extinção. A sua ausência revela o pior que existe no ser-humano, tão apto a vender-se por dinheiro, a refugiar-se no seu medo e no seu egoísmo. Tão atraído pelo poder - quantas vezes pelos poderzinhos de circunstância, de vénias a líderes medíocres e a messias imberbes...

Fui sexta-feira passada ao Teatro-estúdio Mário Viegas, ver o espectáculo Destinatário Desconhecido, pelo Trêsmaisum Teatro.

Dois homens, Max e Martin. Entre eles, nem a distância entorpece o contacto, num pre-2ª Guerra onde as notícias dos amigos vinham movidas a motor, tão longe dos dias de hoje em que a distância é um estado de espírito. O diálogo é ininterrupto entre Max e Martin, o primeiro judeu e o segundo alemão, dois "corações liberais" que falam de negócios, da família, da realidade das sociedades pós 1ª Guerra Mundial, da ascenção de Hitler e da perseguição aos judeus.
Tempos difíceis, de indefinição, de mudanças de poder, de crise económica e crise política, tempos tão atractivos para quem se deixa ir na corrente, para quem não olha a meios para lucrar, para quem quem quer escalar a pirâmide social sem pensar nas cabeças que pisa. Tempos maus para a Amizade. Onde é que eu já vi isto?

O Trêsmaisum Teatro apresenta um espectáculo intimista, como uma conversa à volta de uma mesa, rodeada de amigos e umas garrafas de vinho. Um convívio com as interpretações bem conseguidas e uma iluminação e cenografia que permite a partilha. E é nessa proximidade que nos envolvemos, que nos inquietamos e que, depois, nos vamos sentido traídos pelo tempo, pelos tempos. Pelos Homens.

O carácter de alguém é facilmente medido pelo número de amigos que tem - amigos sinceros, daqueles que não vacilam. Dos que não traem.
A traição da amizade apela à ética. E, há 80 anos como hoje, a ética permite a vingança. Mesmo a cruel. Porque o que melhor temos e oferecemos não pode ser destruído de forma incólume, à espera do esquecimento da história. E é verdade, a vingança, o obrigar os culpados a pagar, permite-nos sair do teatro com a sensação de dever cumprido. E abertos, sem ferida, à amizade que se oferece.

A não perder, espero, em breve, no Ateneu.

quinta-feira, julho 12, 2012

Ladrilhos

Nós somos um quadro ladrilhado no que somos. Somos estilhaços que nos passaram e que guardamos numa memória por que nem sempre ansiamos. Há pessoas que nos dão correr na praia, outros o Tejo contemplado quando voltamos, tantos que nos inspiram a partir, prédios que parecem corpos, dão-nos cigarros e cervejas, aprender a abrir a janela do carro para escarrar, outros dão-nos livros e há quem nos dê melancolia, sorrisos, o inclinar a cabeça para um beijo, a solidão acompanhada por palavras. Palavras?
Ladrilhos. Pequenas montagens de um universo também ele pequenino, de caber na palma da mão, onde nos vemos (e eu vejo-me) na montra confusa da montagem que somos.