terça-feira, dezembro 18, 2012

Como nossos pais


Vivo à noite e, à noite, as cidades, mesmo as pequenas e suburbanas como a que moro - quanto mais as grandes capitais! - vão todas ao encontro da pena. Pena, como uma neblina, que arrasta a perda para lá da vida, como uma longa solidão feita de moinhos de vento que ousamos atacar sem tempo.
A noite traz memórias que julgávamos perdidas, transplanta em quem vagueia a genética dos espaços, os passos dados por quem passou por aqui antes, em noites frias como estas, indo para o trabalho ou saindo da tasca, indo para a tasca ou para encontro proibido - de política ou de amor -, sei lá, passos orgânicos de uma identidade que ninguém nem nada destroçava, feitos de uma juventude sem idade. Passos de quem estava, de quem, à noite, marchava contra a noite; de quem vivia e sonhava; de quem construia castelos de futuro com fundações de esperança. De quem destilava as palavras para as beber sem outro apego que não fosse o que pudessem trazer as palavras.
A noite é uma desolação só, acompanhada de tudo o que nos falta. O tempo passou pela minha cidade e, na paisagem, a cidade cresceu. E cresceu também e principalmente em sombras e silêncios. O sangue da cidade, esse, espessou no cal das suas artérias, amoleceu e agora conta divisas e já vomita o que ainda não comeu - dos que vieram depois, quem ainda está, adensa-se ou quer partir!

Na minha cidade reúnem-se, solenemente, para cantar e contar longas histórias antigas, amigos dos meus pais para quem o tempo foi sincero. Muitos deles é que não foram, mas isso são outras histórias que merecem ser contadas depois. O tempo traz-mos, de bandeja, para me rever neles. Não no silêncio, mas na alegoria do silêncio. E das sombras que nos perseguem. Mesmo cantando!
É justo que sintam essa dor comigo e com os meus amigos - fizeram muito, mas trouxeram-nos de volta ao sítio de onde partiram. Será também justo que resistam connosco, num matrimónio de gerações, ou que se calem para sempre.

(Relembrando Brecht: ”Os tempos modernos não começam de uma vez por todas…, o meu avô já vivia numa época velha, o meu neto talvez ainda viva na antiga. A carne nova come-se com velhos garfos. Épocas novas não a fizeram os automóveis, nem os tanques, nem os aviões sobre os telhados, nem os bombardeiros. As novas antenas continuam a difundir as velhas asneiras. A sabedoria continuou a passar de boca em boca.”

Mas não se vê à noite. Não aqui.)
 

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