sexta-feira, dezembro 24, 2010

Os Públicos e a Cidade

"(...) Aqui na terra 'tão jogando futebol
Tem muito samba, muito choro e rock'n' roll
Uns dias chove, noutros dias bate sol
Mas o que eu quero é lhe dizer que a coisa aqui tá preta (...)"

A citação acima é de uma música do Chico Buarque, “Meu Caro Amigo”. Pela lógica directa das palavras subentende-se uma transmissão de coisas que nem se podiam dizer aos amigos e que, por isso, o estado das coisas ditas não sai daquilo do que é óbvio, porque o poder quando é feito para alguns tende a censurar o poder do que está aberto a todos. E, no entanto, inteligentemente, dizem-nos que, lá, “a coisa” estava um breu de palavras cortadas e já ficamos a perceber o que se passa.

A arte, quando mal usada, pode ser opressora. O futebol, como arte que é, não foge à regra. E veja-se a sagacidade com que nos anunciam medidas austeras, assim daquelas de abrir mais buracos no cinto, quando o Benfica ganha o campeonato ou quando a selecção – ao menos ela – parece sair da crise... Aqui ainda podemos falar aos amigos distantes das cores que temos por aqui, mas as cores que nos mostram, bem, debutaram além do que nos contam!
Esta realidade não me faz entender que o desporto é estupidificante. Já compararam o Figo a um poeta do relvado, o Sporting dos anos 1950 era uma orquestra com cinco violinos, a Laranja Mecânica que foi do Cruyff já tinha sido um filme do Kubrick, para mim o tic-tac do Barcelona é uma encenação sem mácula num Teatro Nou perto de todos. Sim, o Cristiano Ronaldo custou um preço obsceno numa economia global em recessão, mas quanto custa um quadro do Picasso? Como dizia o outro: É a economia, estúpido! O facto da economia andar estúpida é outra questão, enfim... Com a mesma naturalidade com que sou inspirado por um quadro feroz, uma dança fluida, uma música harmoniosa, aquela malta que ali está a chutar a bola transmite-me emoções ímpares – tudo isso me faz sentir vivo e um tipo sentir-se vivo é o tradução mais palpável de liberdade e de esperança no futuro. E isso não me pode fazer mais limitado!

Vila Franca é a cidade que deu ao país uma arte que emerge das vivências de quem de Vila Franca era. Como isso não vale pouco, temos por mérito próprio o museu do Neo-Realismo que o atesta. Mas uma cidade não é só a sua história e o seu edificado – é a participação das populações e o apelo à sua criatividade que amassa o composto que faz as cidades pulsarem, que as projecta para lá das suas fronteiras territoriais, que as faz atraentes para os visitantes, que lhes granjeia notoriedade.
Eu não quero falar da crise, do aumento dos impostos, da falta de futuro, da falta de interesse... Olho à volta e vejo associações a sobreviver e a enfrentar os problemas, a mostrar trabalho feito, a construir oportunidades. Corações que bombeiam um sangue de envolvimento que nos fazem mais fortes, mais próximos do que poderemos ser.
O Teatro do Zero (passe a publicidade), sediado na nossa cidade, apresentou, há uns dias, “O Lugar Sagrado” de António Torrado, naquela que foi, digamos, a sua apresentação oficial. A caminho do teatro passei pelo Cevadeiro, à hora em que jogava o União – ambos estavam com muita gente. É disto que estava a falar! O que não estupidifica não enjoa e criar públicos é superar o estado da arte - se “a coisa aqui tá preta” cores destas não são demais.

Publicado no Jornal Nº 8 do União Desportiva Vilafranquense de Outubro de 2010

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