"Um homem, uma família expulsos das suas terras, esse veículo enferrujado arrastando-se, rangendo pela estrada, rumo ao Oeste. Eu perdi as minhas terras; um tractor, um só, roubou-mas. Estou sozinho e desnorteado. E uma família pernoita numa vala e outra família chega e as tendas surgem. Os dois homens acocoram-se no chão sobre os calcanhares e as mulheres e as crianças escutam em silêncio. Aqui está o nó, ó tu, que odeias as mudanças e temes as revoluções. Mantém esses dois homens afastados, faz com que eles se odeiem, se receiem, desconfiem um do outro. Porque aí começa aquilo que tu receias. Aí é que está o germe do que te apavora. É o zigoto. Porque aí transforma-se o "eu perdi as minhas terras", rompe-se uma célula e dessa célula rota brota aquilo que tu tanto odeias: o "nós perdemos as nossas terras". Aí é que reside o perigo, pois que dois homens nunca se sentem tão sozinhos e tão abatidos, como um só. E desse primeiro "nós" nasce algo muito mais perigoso: "eu tenho algum pão" mais "eu não tenho nenhum." E o resultado dessa soma é: "Nós temas alguma coisa." Então, a coisa toma um rumo; o movimento passa a ter um objectivo. Basta, nessa altura, uma pequena multiplicação e esse tractor, essas terras são nossas. Os dois homens acocorados numa vala, a pequena fogueira, a carne a fritar numa frigideira comum, as mulheres caladas, de olhos fixos; atrás, as crianças escutando com o coração palavras que o seu cérebro não alcança. A noite desce. A criança constipa-se. Olhe, tome este cobertor. É de lã. Pertenceu a minha mãe. Tome, fique com ele para a criança. Sim, é aí que tu deves lançar a tua bomba. É este o começo da passagem do "eu" para o "nós"."
Num país sem inverno eu escreveria com menos frio. Pudesse escolher a minha nacionalidade e escolhia uma universal, na fronteira fluida entre Matanzas e Vila Franca de Xira. Aí comentaria como se veraneasse o que, política e artisticamente, me aprouvesse! A aferição da qualidade, dessa e desta, ficaria sempre - como ficará sempre - para as duas pessoas que me leem. Quem sabe, nessa fronteira, arriscaria escrever noutros formatos? Assim, é o que pode ser até ser o que é.
terça-feira, maio 18, 2010
Entre o individualismo e a individualização
Não posso deixar de partilhar este excerto da obra de Steinbeck, "As Vinhas da Ira". Numa era de individualização, da derrota aparente do colectivismo, da afirmação dos estilos de vida encerrados no "Eu", eis a causa, eis parte da solução - para quem, nas palavras do autor, como Paine, Marx, Jefferson ou Lenine, somos efeitos. Como "nós".
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1 comentário:
Li este livro na minha adolescência e marcou-me imenso, recordo-me sobretudo do poderoso final e da lição de solidariedade que ele encerra. Mas deste-me vontade de lê-lo de novo, agora com outra maturidade, para descobrir novos significados. Como este excerto, que te agradeço teres partilhado.
Querem-nos divididos mas a vida é feita de "nós" e a malta não é parva. Acredito que alguma coisa se está a começar a mexer e que mais dia menos dia eu vou voltar a sentir-me orgulhosa de ser portuguesa. Sonho?
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