domingo, dezembro 12, 2004

Pronto, confessamos !

Vítor Dias no "Semanário"26 de Novembro de 2004

No exacto dia da abertura dos trabalhos do 17º Congresso do PCP, somos forçados a fazer um impressionante conjunto de confissões que arrasam compromissos e convicções de grande parte da nossa vida.
Sim, confessamos que o PCP não tem a mais pequena ideia ou proposta interessante para apresentar ao país ou o mais pequeno papel a representar na vida política portuguesa, a ninguém sendo lícito perder tempo a interrogar-se porque é que, assim sendo, tantos comentadores e pessoas de outros quadrantes políticos sempre tão hostis ao PCP, à vez e não todos sobre tudo, exprimem posições praticamente idênticas às defendidas pelo PCP sobre um vasto conjunto de problemas e questões.
Sim, confessamos que o PCP é “um deserto de valores” e um território político de onde, por oitava praga do Egipto, se sumiu todo o brilho, talento, sentido de humor, competência e inteligência.
Sim, confessamos mais em concreto que o PCP, como alguns agora inteligentemente redescobriram, não tem intelectuais e que são meros pseudónimos ou invenções do departamento de propaganda do PCP todos os nomes de destacados e qualificados intelectuais que são apresentados ou se assumem como membros do PCP ou que às centenas figuram habitualmente nas listas de apoio à CDU.
Sim, confessamos que os comunistas estão “velhos” e que isso é uma consequência natural desse justíssimo sistema em que, por cada ano que passa, os comunistas passam a ter mais um ano de idade, coisa que só a eles acontece e a que merecidamente escapam comentadores, jornalistas e membros de outros partidos.
Sim, confessamos o grave e irreversível “declínio” eleitoral do PCP e a exclusiva responsabilidade que nele têm as orientações “obsoletas” e a empedernida resistência dos comunistas a gloriosas “mudanças”, com isto confessando também que não partilhamos da ideia “crispada”, “fechada” e “sectária” de que muitos dos que nos “media” flagelam o PCP por maus resultados eleitorais seriam bem mais sérios se, pura e simplesmente. dissessem : “Conseguimos! Bem fizémos por isso”.
Sim, com respeito por todas as opiniões, confessamos entretanto que é um escândalo de bradar aos céus que um ex-operário possa porventura ser eleito Secretário-geral do PCP, não vindo agora ao caso lembrar quantos se deslumbraram e babaram com a chegada de Lech Walesa à Presidência da República da Polónia nos anos 90 ou com a eleição de Lula da Silva como Presidente do Brasil em 2002.
Sim, confessamos que é uma imperdoável perversidade antidemocrática que no PCP se façam auscultações ou consultas alargadas sobre nomes em vez de assumir uma escolha arbitrária e iluminada, se fale em “inclinação” em vez de decisão ou eleição (que, por acaso, só outro órgão ainda a eleger pode fazer) e se fale em preparação de propostas quando, como toda a gente sabe, no PSD, no PS, no CDS-PP e no BE, elas sempre aparecem por geração espontânea ou por recado, via e-mail ou SMS, do Espírito Santo (não é o banco).
Sim, confessamos que é uma horrorosa prática antidemocrática que no PCP, ao longo de dois meses, se realizem cerca de mil reuniões de militantes para discutir documentos, teses e propostas políticas e se divulgue a lista proposta para o seu Comité Central antes de o Congresso começar, sendo necessário reconhecer que fazem bem todos os jornalistas e comentadores que, pelos vistos, consideram como irrepreensíveis práticas de outros partidos como a de divulgar as moções para Congresso apenas quatro dias antes da sua realização ( o que significa que a esmagadora maioria dos delegados entra para o Congresso sem as ter lido) ou a de afixar listas apenas ao início da manhã da própria votação.
Sim, confessamos que os rótulos e etiquetas persistentemente aplicados a comunistas (e a ex-comunistas) são uma incomparável manifestação de seriedade, espírito crítico e profundidade e que, razoavelmente e de todos os pontos de vista, nada se pode objectar ao decreto mediático que, “per secula seculorum” e salvo o parágrafo seguinte, procedeu à rígida e quase imutável identificação dos “ortodoxos” e “renovadores”, dos monstros e dos belos, dos demónios e dos anjos, dos cinzentos e dos cintilantes.
Sim, confessamos o nosso rendido acordo à ideia longamente concretizada de que, salvo excepções que se contam pelos dedos de uma mão, comunistas bons ou com valor só aquele nosso primo ou o “gajo porreiro” que conhecemos da nossa rua ou empresa, só quem tenha entrado em conflito público com o PCP, só quem tenha deixado de ser comunista ou só quem já tenha morrido.
Todas estas confissões de um dirigente do PCP, embora quase ignoto e irrelevante, têm, como seria de esperar, uma volta na ponta e visam propor um negócio ou um acordo sem o qual ficam sem valor ou falhas de sinceridade. E que consiste em, como justa contrapartida, jornalistas, comentadores e responsáveis de outros partidos se absterem durante três meses de, cansativa e desnecessariamente, repetirem, a seu modo, a substância essencial destas confissões e antes se dedicando a outro tipo de análises. Porventura igualmente críticas, como é seu direito, mas menos ligeiras e mais informadas, menos preguiçosas e mais exigentes, menos cansadas e mais inovadoras.
E assim permitirem que, por via desta espécie de trégua negociada, os portugueses possam ajuizar pela sua própria cabeça dos méritos e deméritos e dos defeitos e qualidades do PCP, livres, por três meses, do turvo maremoto de preconceitos, falsificações, esquematismos, dogmatismos e ódios mal disfarçados que hoje, como ontem e anteontem, procuram cercar o PCP e impedir o seu reforço de influência que tantos, com inexcedível cinismo e desvelo tão comovente quanto suspeito, proclamam desejar ardentemente.

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