
De facto, foi com revolta que encarei os acontecimentos recentes em Timor-Leste, onde, para mim, sempre foi claro que se estava perante uma cabala que, primeiro: pretendia afastar o primeiro-ministro Mari Alkatiri; segundo: pretendia provocar eleições antecipadas e aproveitar o efeito negativo na opinião pública para retirar o partido FRETILIN do poder (algo que em circunstâncias normais, nos próximos anos, não conseguiria ser feito de forma democrática).
Nesta cabala participaram de forma inequívoca três unidades fundamentais, timorenses: Xanana Gusmão, Presidente da República (aqui na fotografia ao lado da antiga Secretária de Estado dos Assuntos Externos estado-unidense); Ramos-Horta, minstro dos Negócios Estrangeiros e prémio Nobel da Paz; e Bispos e clérigos católicos, religião maioritária em Timor-Leste.
Em comum, estas três unidades têm um sentido: serem anti-FRETILIN e acreditarem num modelo económico que não era o do governo, mas que vai mais de encontro aos interesses do governo australiano (de alguma forma, seja por casamento ou por necessidade, há sempre alguma coisa que os liga à potência regional). Nesta luta, tudo serviu: instigar à revolta militar; propaganda vilpendiosa; argumentação religiosa de ordem vária, roçando a estupidez mentirosa (veja-se, por exemplo, as acusações de que por o governo estar a mandar estudantes para Cuba, significaria que o muçulmano e comunista Alkatiri estaria a preparar forças para instalar em Timor o comunismo e matar os padres e religiosos). Pronto, entidades tão respeitadas no mundo (até certo ponto, justamente), acabam por ter comportamentos que fariam inveja a Suharto ou a Salazar, os dois ditadores que colonizaram Timor e contra os quais gerações inteiras lutaram.
Aqui fica, então, o artigo anunciado.
Timor Leste: o golpe que mundo não percebeu
por John Pilger
O conluio da Austrália, escreveu o Professor Roger Clark, uma autoridade mundial em direito do mar, "é como adquirir material a um ladrão ... o facto é que eles não têm direito histórico, nem legal, nem moral sobre Timor Leste e os seus recursos". Debaixo deles jazia uma pequena nação então a sofrer uma das mais brutais ocupações do século XX. A fome imposta e o assassínio extinguiram um quarto da população: 180 mil pessoas. Proporcionalmente, isto foi uma carnificina maior do que aquela no Cambodja sob Pol Pot. A Comissão da Verdade das Nações Unidas, que examinou mais de 1000 documentos oficiais, relatou em Janeiro que governos ocidentais partilharam responsabilidades pelo genocídio; pela sua parte, a Austrália treinou a Gestapo da Indonésia, conhecida como Kopassus, e seus políticos e jornalistas principais divertiram-se junto com o ditador Suharto, descrito pela CIA como um assassino em massa.
Actualmente a Austrália gosta de apresentar-se como um vizinho prestativo e generoso de Timor Leste, depois de a opinião pública ter forçado o governo de John Howard a enviar uma força de manutenção da paz da ONU seis anos atrás. Timor Leste é agora um estado independente, graças à coragem do seu povo e à tenaz resistência dirigida pelo movimento de libertação Fretilin, que em 2001 ganhou o poder político nas primeiras eleições democráticas. Nas eleições regionais do ano passado, 80 por cento dos votos foram para a Fretilin, dirigida pelo primeiro-ministro Mari Alkatiri, um "nacionalista económico" convicto, que se opõe à privatização e à interferência do Banco Mundial. Um muçulmano secular no país sobretudo Católico Romano, ele é, acima de tudo, um anti-imperialista que enfrenta as exigências ameaçadoras do governo Howard por uma partilha injusta das benesses do petróleo e do gás do Estreito de Timor.
Em 28 de Abril último uma secção do exército timorense amotinou-se, ostensivamente acerca de pagamentos. Uma testemunha ocular, a repórter de rádio australiana Maryann Keady, revelou que oficiais americanos e australianos estavam envolvidos. Em 7 de Maio Alkatiri descreveu os tumultos como uma tentativa de golpe e disse que "estrangeiros e gente de fora" estavam a tentar dividir o país. Um documento escapado da Australian Defence Force revelou que o "primeiro objectivo" da Austrália em Timor Leste é "ganhar acesso" para os militares australianos de modo a que possam exercer "influência sobre os decisores de Timor Leste". Um "neo-con" bushista não teria dito melhor.
A oportunidade para "influenciar" surgiu em 31 de Maio, quando o governo Howard aceitou um "convite" do presidente de Timor Leste, Xanana Gusmão, e do ministro das Relações Exteriores, José Ramos Horta – que se opõem ao nacionalismo de Alkatiri – para enviar tropas para Dili, a capital. Isto foi acompanhado por reportagens tipo "nossos rapazes vão salvar" na imprensa australiana, juntamente com uma campanha de difamação contra Alkatiri como um "ditador corrupto". Paul Kelly, antigo editor-chefe do Australian de Rupert Murdoch, escreveu: "Isto é uma intervenção altamente política ... a Austrália está a operar como uma potência regional ou um hegemonista político que modela a segurança e o porvir político". Tradução: a Austrália, tal como o seu mentor em Washington, tem um direito divino a mudar o governo de um outro país. Don Watson, redactor dos discursos dos antigo primeiro-ministro Paul Keating, o mais notório apologista de Suharto, incrivelmente escreveu: "A vida sob uma ocupação assassina pode ser melhor do que a vida num estado fracassado..."
Ao chegar com uma força de 2000 homens, um brigadeiro australiano voou de helicóptero directamente para o quartel general do líder rebelde, major Alfredo Reinado — não para prendê-lo pela tentativa de derrubar um primeiro-ministro democraticamente eleito, mas para cumprimentá-lo calorosamente. Tal como outros rebeldes, Reinado foi treinado em Canberra.
Dizem que John Howard ficou agradado com o título de "vice-xerife" do Pacífico Sul, atribuído por George W. Bush. Recentemente ele enviou tropas para reprimir uma rebelião nas Ilhas Salomão, e oportunidades imperiais acenam em Papua Nova Guiné, Vanuatu e outras pequenas nações insulares. O xerife aprovará."
22/Junho/2006